Interciencia
versión impresa ISSN 0378-1844
INCI v.30 n.3 Caracas mar. 2005
O SISTEMA AGRÍCOLA GUARANI MBYÁ E SEUS CULTIVARES DE MILHO: UM ESTUDO DE CASO
Adriana Perez Felipim e Oriowaldo Queda
Adriana Perez Felipim. Mestre em Ciências Florestais, Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Assessora de projetos, Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Brasil. email: adrifelipim@uol.com.br
Oriowaldo Queda. Doutor em Agronomia, Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", USP, Brasil. Professor, Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", USP, Brasil, e Universidade de Araraquara (UNIARA), SP, Brasil.
Resumen
A través de una descripción estricta fue analizado el sistema agrícola practicado por algunas familias de la etnia Guarani Mbyá que habitan la región Sudeste del Brasil. La localidad escogida para este estudio de caso fue la comunidad indígena Guarani Yvyty, situada en la Ilha do Cardoso, municipio de Cananéia, São Paulo, Brasil. En la descripción fueron enfocados algunos aspectos acerca del manejo agrícola Guarani que estarían relacionados con la conservación in situ del maíz (Zea mays L.) por ellos cultivado, el avaxí eteí. Los datos de campo fueron recogidos a través de los métodos comúnmente utilizados en las ciencias sociales, tales como observaciones sistemáticas y entrevistas con informantes "claves", utilizándose una guía semiestructurada para las cuestiones a ser investigadas. Los datos analizados muestran que la conservación in situ de los cultivos del maíz avaxí eteí presentes en las áreas de tala y quema de las familias Mbyá es posibilitada por los diversos mecanismos que componen su sistema agrícola y que favorecen la manutención y el aumento de la variabilidad genética de sus cultivos. Entre estos mecanismos se destaca la constante práctica de cultivos posibilitada por las redes de relaciones sociales entre las familias Mbyá.
Summary
The agricultural system practiced by some Guarani Mbyá families living in the Southeastern region of Brazil was studied, following a particular description. The place chosen for this case study was the Guarani Yvyty settlement, a Guarani Mbyá community located at Cardoso Island, city of Cananéia, Sao Paulo State, Brasil. Some aspects of the traditional farming practices of the avaxí eteí, traditional varieties of maize (Zea mays L.) cultivated therein, were focused as it pursues the in situ conservation of the maize. The study was based on fieldwork techniques usually adopted in the social sciences: direct observation in the field and information assessment from key informers who answered a semi-structured questionnaire. The data demonstrate that the in situ conservation of the studied maize varieties is made possible because of the several mechanisms forming their agricultural system. They provide the maintenance and the increase of the genetic variability of maize varieties. Among these mechanisms, the constant practice of maize varieties exchange between Guarani Mbyá families can be cited.
Resumo
Foi analisado, através de uma descrição pontual, o sistema agrícola praticado por algumas famílias Guarani Mbyá residentes na região Sudeste do Brasil. O local escolhido para um estudo de caso foi a aldeia Guarani Yvyty, localizada na Ilha do Cardoso, município de Cananéia, São Paulo, Brasil. Dentro dessa descrição, foram enfocados alguns aspectos do manejo agrícola Guarani que estariam voltados para a conservação in situ do milho (Zea mays L.) por eles cultivado, o avaxí eteí. Os dados obtidos basearam-se nas técnicas de trabalho de campo comumente utilizadas nas ciências sociais como: observações diretas em campo e coleta de informações com informantes chaves (utilizando-se de um roteiro semi-estruturado para as questões a serem abordadas). Os dados analisados demonstram que a conservação in situ dos cultivares de avaxí eteí presentes nas áreas de roça das famílias Mbyá é viabilizada pelos mais variados mecanismos que compõem o seu sistema agrícola e que favorecem a manutenção e o aumento da variabilidade genética de seus cultivares. Dentre esses mecanismos destaca-se a constante prática da troca de cultivares viabilizada pelas redes de relações sociais entre as famílias Mbyá.
PALAVRAS CHAVE / Conservação in situ / Índios Guarani / Mata Atlântica / Milho / Sistema Agrícola /
Recebido: 12/03/2004. Modificado: 24/02/2005. Aceito: 28/02/2005.
A partir da década de 80, vários estudos sobre sistemas agrícolas autóctones passaram a demonstrar o importante papel das práticas utilizadas, pelos mais diferentes povos, no manejo e conservação da diversidade inter e intra-específica de recursos fitogenéticos. Exemplos claros, a este respeito, estão em diversos trabalhos como os de Kerr e Clement (1980), Chernela (1987), Posey (1987), Cury (1993; 1998), Peroni (1998), entre outros que descrevem as interações do manejo agrícola com os processos de conservação e de geração de variabilidade genética de plantas cultivadas e não cultivadas no interior de áreas de roça.
Seguindo essa mesma lógica, o presente trabalho busca oferecer uma descrição de alguns aspectos do manejo agrícola praticado por famílias Guarani Mbyá residentes hoje na região Sudeste do Brasil, com reflexo na conservação in situ do milho (Zea mays L.) tradicionalmente cultivado por este grupo indígena.
Os Guarani Mbyá se estruturam, do ponto de vista social, econômico, político e cultural, através de uma constante movimentação entre aldeias localizadas no Paraguai, Uruguai, Argentina e Brasil e é dentro dessa dinâmica de ocupação e uso do espaço territorial que seu sistema agrícola é praticado.
Longe de ser praticada em larga escala, a agricultura Guarani subsiste, pura e simplesmente, por estar imbricada na esfera mais íntima de sua cultura, a religiosidade. Muitos cultivos, secularmente manejados e denominados pelo próprio grupo de "verdadeiros" ainda podem ser encontrados em aldeias da região Sudeste do país, sobretudo o milho Guarani (avaxí eteí).
Poucos dados bibliográficos abordam as formas de manejo empregadas pelos Guarani que, ao longo de muito tempo, contribuíram para a manutenção de seu milho cultivado. Sabe-se apenas que este cultivo, acompanha os constantes deslocamentos dos Mbyá e que sua produção é destinada para a realização de alguns rituais religiosos e para a manutenção de um banco de sementes in situ que garanta seu plantio a cada ano agrícola, independente de onde a família Guarani estiver residindo.
Considerando que o milho cultivado e domesticado (incluindo suas mais diferentes raças) não dispõe de um mecanismo de propagação e dispersão natural, dependendo totalmente da ação humana para sua sobrevivência (Brieger, 1949), não há como dissociar a fundamental importância das técnicas empregadas pelos Guarani para a conservação do avaxí eteí.
No intuito de tornar visível o diálogo que une as abordagens da antropologia, essencial na compreensão do papel do milho no plano simbólico e sociocultural do grupo indígena em questão, às abordagens da genética evolutiva fundamental para explicar alguns dos mecanismos do manejo agrícola Guarani que viabilizam a conservação do milho in situ, buscou-se investigar neste trabalho: 1) a organização sociocultural deste grupo indígena e sua relação com o funcionamento de seus sistemas agrícolas, 2) os usos e valores culturais atribuídos pelos Mbyá ao seu milho cultivado, e 3) algumas das práticas agrícolas que permitem a manutenção da variabilidade genética de seus cultivares.
População e Área de Estudo
A população indígena abrangida por este estudo pertence ao grupo Guarani Mbyá e habita uma área localizada (Figura 1) na Ilha do Cardoso, município de Cananéia, litoral Sul do Estado de São Paulo (272km da capital do Estado), Brasil.
Os Mbyá, juntamente com os Kaiowá e os Nhandeva compõem os três grandes grupos Guarani (família lingüística Tupi-Guarani e tronco lingüístico Tupi) contemporâneos que habitam o território brasileiro. Todos os três grupos também habitam áreas de países vizinhos ao Brasil. Em 2001, segundo dados apresentados por Ladeira (2001), a população Guarani presente no Brasil estava estimada em 33000 pessoas: Kaiowá (20000), Nhandéva (7000) e Mbya (6000).
Atualmente, os Kaiowá concentram-se em aldeias no Paraguai e no Estado do Mato Grosso do Sul, Brasil. Os Nhandéva vivem também no Paraguai e em aldeias no Estado do Mato Grosso do Sul, no interior dos Estados do Sul do Brasil, no interior do Estado de São Paulo (Posto Indígena de Araribá) e em algumas regiões do litoral de São Paulo e Santa Catarina. Por fim, os Mbyá vivem em várias aldeias distribuídas pelo leste do Paraguai, nordeste da Argentina e norte do Uruguai. No Brasil, estão presentes no interior e no litoral dos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, a maioria das aldeias encontram-se no litoral (Ladeira, 2001).
A mobilidade espacial está expressa na organização sociocultural dos Guarani Mbyá e na configuração, ocupação (não contígua), uso e manutenção de seu território (Ladeira, 2001). Dentro desse espaço geográfico que compreende partes do Paraguai, Argentina, Uruguai e regiões Sul e Sudeste do Brasil, indivíduos e famílias Guarani Mbyá constantemente se movimentam na finalidade: de dar continuidade aos movimentos migratórios de caráter político religioso; de ocupar locais onde possam ser reconhecidos sinais da passagem de seus antepassados; de ocupar locais onde possam viver segundo os fundamentos mítico-culturais Mbyá; de praticar suas atividades tradicionais de subsistência e de manter ativa uma intrincada rede de colaborações e trocas entre aldeias, possibilitando a circulação de notícias, curas, rezas, remédios e sobretudo, cultivares agrícolas (Ladeira, 1992). A aldeia Guarani da Ilha do Cardoso é um exemplo disto.
A aldeia da Ilha do Cardoso formou-se em meados de 1992 com a ocupação do local por uma família Mbyá que na década de 80 encontrava-se residindo na Ilha das Peças, estado do Paraná, região Sul do país. O chefe desta família, Marcílio Karaí, até os dias atuais lidera a referida comunidade indígena. Depois de 1992, outras famílias Guarani (família de Tiago e família de Gregório) agregaram-se à família de Marcílio Karaí e passaram também a residir na aldeia da Ilha do Cardoso. A aldeia Guarani presente na Ilha do Cardoso não possui limites físicos delimitados administrativamente. Portanto, até o presente momento, não foi identificada a extensão da área de uso Guarani Mbyá no local.
A Ilha do Cardoso detém uma área de 22500ha recoberta por diversas formações vegetais características do Domínio Mata Atlântica: vegetação pioneira de dunas, vegetação de restinga, vegetação de mangue, floresta pluvial tropical de planície litorânea, floresta pluvial tropical da Serra do Mar, formação arbustiva de topo de morro (Barros et al., 1991; Diário Oficial, 1998). O clima local apresenta-se caracterizado como megatérmico superúmido, nenhum déficit de água e grande excesso no verão, com temperatura média anual de 21,2ºC (Barros et al., 1991). A topografia pode ser descrita (Barros et al., 1991) como predominantemente montanhosa na região central da Ilha (maciço montanhoso constituído de rochas metamórficas do período Pré-Cambriano inferior); plana em suas extremidades Norte e Sul (relevo baixo formado por depósitos arenosos recentes) e vertente Oeste (onde se encontram extensos manguezais). Em 1962, a Ilha do Cardoso foi declarada Parque Estadual (Diario Oficial, 1962).
Procedimentos Metodológicos
Os dados aqui apresentados foram obtidos em duas situações: I) durante trabalhos institucionais realizados pelo CTI - Centro de Trabalho Indigenista (organização não governamental indigenista que trabalha com os Guarani do litoral brasileiro desde 1979, no período de março 1997 a dezembro 2001, na aldeia da Ilha do Cardoso e em outras aldeias do Vale do Ribeira, SP (aldeia de Rio Branquinho de Cananéia, município de Cananéia; aldeia Pindoty, município de Pariquera-Açu; aldeia da Juréia, município de Iguape; aldeia Peguaoty, município de Sete Barras), litoral Sul do Estado de São Paulo (aldeia do Aguapéu, município de Mongaguá) e litoral Sul do Estado do Rio de Janeiro (aldeias de Araponga e Parati-Mirim, ambas no município de Parati); e II) durante uma pesquisa para dissertação de Mestrado realizada entre março 1998 e dezembro 2001, especificamente na aldeia Guarani da Ilha do Cardoso.
Em ambas situações, as informações coletadas basearam-se nas técnicas de trabalho de campo comumente utilizadas nas ciências sociais, ou seja, observações diretas em campo (observação participante) e coleta de informações com informantes chaves, utilizando-se de um roteiro semi-estruturado para os seguintes objetivos: 1) identificação das formas de ocupação, da localização e do tempo de uso das áreas de roça; 2) identificação, da origem e tempo de introdução dos cultivos e cultivares que cada família detinha em suas roças, e 3) identificação de técnicas de plantio, colheita, seleção e armazenagem empregadas para o cultivo do milho Guarani. Em 1997, início da coleta de dados, a aldeia da Ilha do Cardoso contava com três famílias Mbyá, totalizando 28 pessoas. Foram escolhidos como informantes-chave os chefes de cada uma destas famílias. As viagens à campo foram feitas mensalmente, com duração de cerca de 10 dias alternando a estadia entre as respectivas aldeias indígenas.
Resultados e Discussão
O milho na agricultura Guarani
A maior parte das informações existentes sobre a agricultura praticada pelos Guarani encontra-se descrita em obras históricas e etnográficas produzidas, sobretudo por missionários jesuítas, durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Muitas dessas fontes foram utilizadas como referência para trabalhos de arqueólogos, lingüistas, etnólogos e historiadores que caracterizam os Guarani históricos como grupos horticultores de floresta tropical e subtropical, detentores de uma grande diversidade de plantas cultivadas, em especial, o milho.
Com base na historiografia colonial, Scatamacchia (1993-1995) contextualiza os Guarani históricos em seus trabalhos de arqueologia como "cultivadores de milho" e trabalha com a hipótese da existência de duas rotas migratórias ligadas à tradição Tupi (cultivadores de mandioca) e à tradição Guarani (cultivadores de milho) que vieram a se encontrar na costa atlântica, num tempo anterior à chegada dos colonizadores europeus. Schmitz e Gazzaneo (1991), na publicação "O que comia o Guarani pré-colonial", retratam que o milho era considerado um dos mais importantes cultivos deste grupo indígena. Franz Müller (1989) faz referência à várias comidas tradicionais Guarani feitas à base de milho. Noelli (1994, 2000), também com base em fontes documentárias históricas, faz referência a mais de 10 variedades de milho cultivadas pelos Guarani.
Em meados do século XX, quando novos trabalhos de campo sobre os Guarani são produzidos, o milho cultivado por este Grupo indígena volta a ser referenciado. Nas áreas de genética e melhoramento vegetal, as raças de milho cultivadas pelos Guarani, juntamente com outras raças de milho sul-americanas passam a ser identificadas e descritas (Brieger et al., 1958; Paterniani e Goodman, 1977). Nas etnografias, autores como Cadogan (1948, 1959) e Schaden (1974) descrevem que os Guarani ainda seguiam cultivando, em uma escala bem menor, as mesmas plantas que detinham seus ancestrais históricos. Segundo os autores, até mesmo em situações de indisponibilidade de terras e recursos naturais, os Guarani persistiam com sua agricultura e dentre as plantas cultivadas, ainda destacava-se o milho tradicional. Depois dessas publicações, abordagens mais detalhadas a respeito do milho Guarani, especialmente o milho cultivado pelos Guarani Mbyá, aparecem somente em trabalhos como os de Ladeira (1992, 2001) e Garlet (1997). Os autores mencionados, além de citarem os diferentes tipos de milho tradicionalmente cultivados pelos Mbyá, também destacam a importância deste cultivo pelo fato de estar intimamente relacionado com importantes ritos religiosos praticados nas aldeias.
Os trabalhos de Ladeira (1992, 2001) e Garlet (1997) retratam uma realidade ainda vivida pelos Guarani Mbyá. Nos dias atuais, podemos continuar afirmando que a agricultura está intimamente relacionada com as esferas socioculturais, políticas e religiosas deste grupo indígena. Esta atividade continua sendo uma prática voltada, sobretudo, à manutenção de suas plantas tradicionalmente cultivadas e denominadas de "verdadeiras", "sagradas". Nas roças familiares das aldeias Guarani do litoral Sul do Estado do Rio de Janeiro, litoral Sul de São Paulo e Vale do Ribeira foi encontrado um total de 8 variedades de batata-doce (Ipomoea batatas (L.) Lam.) denominadas: jety pytã, jety kara ü, jety mandi", jety andaí, jety xï, jety ropé, jety ju e jety mbykuraãï; 3 variedades de amendoim (Arachis spp.): manduvi pytã guasu, manduvi jukexï guasu e manduvi xï ou mirï; 2 variedades de feijão "de corda" (possivelmente pertencente ao gênero Vigna): kumandá xaï e kumandá ropé"; 2 variedades de mandioca doce (Manihot esculenta Crantz): mandiô karapeí e mandiô xï; 2 variedades de Coix lacryma L.: kapiá guasu e kapiá mirï; 1 variedade de cabaça/porunga rasteira (Lagenaria spp): yakuá; 1 variedade de sorgo sacarino (Sorghum spp.): takuareë mirï ou takuareë avaxí; 1 cultivar de tabaco (Nicotiana tabacum L.): petÿ; 1 variedade de melancia (possivelmente pertencente ao gênero Citrullus): xanjau pororó; e um cultivar (bastante utilizado para artesanato) denominado de yva ü, possivelmente pertencente ao gênero Cardiospermum.
Dos diferentes tipos de milho Guarani (avaxí eteí) foram levantados: avaxí ju ("milho amarelo"), avaxí yuyï ou avaxí mitaï ou ainda avaxí toveí ("milho criança" - milho anão com grãos de coloração amarela), avaxí xï ("milho branco"), avaxí takuá ("milho taquara" - milho de espiga fina e alongada com grãos de coloração branca), avaxí pytã ("milho vermelho"), avaxí oy ("milho azulado"), avaxí hü ("milho preto"), avaxí parakau ou vaká (milho com grãos de coloração mesclada branco e vermelho), avaxí pichingá ou avaxí pororó (milho pipoca) e avaxí pará. (milho "pintado" - quando o milho avaxí eteí aparece segregado no caractere coloração dos grãos, estes recebem a denominação Pará).
Com exceção do milho pipoca (avaxí pichingá ou pororó), os demais cultivares de avaxí eteí constituem-se num tipo de milho farináceo/amiláceo, de endosperma branco, apresentando variações na coloração da aleurona presente nos grãos fator que determina, para os Guarani, a classificação da maioria de seus cultivares de milho. Para os cultivares de avaxí eteí denominados de avaxí yuyï (milho amarelo pequeno ou milho criança) e o avaxí takuá (milho branco de espiga fina e alongada), além da coloração dos grãos, são considerados também ciclos de produção e tamanho da espiga e da planta.
O milho Guarani pode ser consumido cozido, assado e também preparado em diversos tipos de alimentos como mbeju (massa fina feita com farinha de milho tostada e água); mbojapé (massa feita com farinha de milho e água, assada nas cinzas); rorá (cozido de farelo de milho misturado com água); mbaipy (um tipo de "cozido" feito com milho verde triturado e água, recoberto com folhas de peguaó (Musa sp.) e assado sob as cinzas de uma fogueira); avaxí kuí (farinha feita de milho e amendoim socados num pilão); kângui (espécie de mingau preparado com o milho e batata-doce); kaguyjy (bebida feita com milho, que deve ser mascado para fermentação e misturado com água - apenas as meninas de 13, 14 anos, que não atingiram a puberdade podem prepará-lo. Segundo os mais velhos, ao beber o kaguyjy, o Guarani está limpando seu corpo, deixando-o sadio). Segundo a maioria dos informantes, os alimentos tradicionais Guarani podem ser feitos com qualquer tipo de milho, desde que seja avaxí eteí.
Avaxí eteí significa "milho verdadeiro", uma classificação genérica que abrange todos os tipos de milho tradicionalmente cultivados pelos próprios Guarani Mbyá. Bastante destacado nas produções etnográficas feitas a respeito desse grupo por sua função religiosa e social, o avaxí eteí está relacionado a um dos mais importantes ritos religiosos que acontecem anualmente nas aldeias Guarani, o Nimongarai (Schaden, 1974; Ladeira, 1992; Garlet, 1997).
O Nimongarai aparece retratado como o batismo do milho, momento onde são revelados e distribuídos os nomes em língua Guarani às crianças da aldeia que, segundo os Mbyá, representam suas verdadeiras "almas" (Ladeira, 1992; Schaden, 1974). A influência do "nome-alma" atribuído a um determinado indivíduo Mbyá durante o Nimongarai pode ser vista na organização social e espacial do grupo Mbyá como um todo, no papel do indivíduo dentro do grupo e também com quem este pode se unir matrimonialmente e onde deve constituir sua morada (Ladeira, 1992).
Para que sejam atribuídos os nomes almas às crianças, os respectivos pais devem levar à opy (casa de rezas) alguns elementos simbólicos que devem estar presentes no Nimongarai. Dentre esses elementos está o mbojapé, um tipo de alimento preparado com farinha de milho e água, assado nas cinzas de uma fogueira. O mbojapé só pode ser feito com sementes de milho Guarani, qualquer que seja o cultivar disponível, com exceção do milho pipoca.
A época propícia à atribuição do(s) nome(s) alma(s) às crianças Guarani se dá no período das águas, verão, que é representado pela entrada do novo ano Guarani (Ara Pyau). Sendo assim, todo o calendário agrícola Guarani, desde os primeiros plantios até as últimas colheitas do milho (avaxí eteí), acaba por ser organizado em função deste período (Ladeira, 1992).
Horticultura Guarani
Praticada familiarmente (família nuclear e/ou extensa) e manejada dentro de um sistema de corte e queima, a agricultura Guarani se caracteriza por representar um verdadeiro mosaico de cultivos e cultivares agrícolas "tradicionais" e "não tradicionais" plantados conjuntamente em um mesmo espaço de roça. É denominado aqui de "cultivares não tradicionais" o que é considerado pelos próprios Guarani como "cultivo do branco", adquiridos com a sociedade não indigena por intermédio de compra, troca, ou doação. Caracterizados por sua "existência temporária" na agricultura autóctone Guarani (Ladeira, 1992), esses cultivares não acompanham os deslocamentos familiares deste Grupo indígena. Muitas das plantas cultivadas "não tradicionais" encontradas nas áreas de roça das famílias Guarani da Ilha do Cardoso tiveram procedência direta do vizinho mais próximo da aldeia ou foram adquiridas no comércio local e regional.
Após a escolha e limpeza (corte e queima) das áreas de roça, iniciam-se as atividades de plantio na aldeia. Realizadas num período que se estende de junho/julho até outubro/novembro, as atividades de plantio, tanto do milho Guarani como também das diversas outras plantas cultivadas, são feitas de forma escalonada, plantando-se um pouco a cada mês, sempre na lua minguante (jacy nha pytu ou ynhypytum ou ndymbte). Caso a família detenha naquele ano agrícola mais de uma variedade de milho, normalmente, é plantado um cultivar a cada lua minguante de cada mês.
O cultivo das primeiras plantas cultivadas em junho/julho (inverno na região Sudeste) permite que as primeiras colheitas sejam feitas logo no início das grandes chuvas (final da primavera e início do verão na região Sudeste), período que coincide com a chegada do novo Ano Guarani (Ara pyau). Ainda no caso do milho Guarani, a técnica de plantar de forma escalonada seus cultivares, em uma mesma área de roça, possibilita evitar a sincronização de floração dos diferentes tipos de milho. Segundo os Guarani, essa técnica "ajuda a evitar o casamento" entre as distintas variedades.
Para cada uma das variedades de milho Guarani é empregada a seleção massal, onde um número de plantas é selecionado, segundo os caracteres desejáveis, colhido e misturado para se obter a geração seguinte. Caracterizada como a técnica mais empregada desde os primórdios da agricultura, a seleção massal, normalmente, é feita com base em caracteres qualitativos pouco influenciados pela variação do ambiente e com expressão fenotípica de grande efeito, ou seja, de fácil visualização, como é o caso do critério "cor de grãos" empregado pelos Guarani.
Logo após as primeiras colheitas do milho Guarani, cada família traz para a opy (casa de rezas) uma cesta (ajaká) feita de taquara nativa (Poaceae) e cipó imbé (Philodendrom imbe Schott) com suas sementes de avaxí eteí. Colocadas no imbéí (uma espécie de altar presente dentro da casa de rezas) as sementes são deixadas para serem bentas pelo líder religioso local. As rezas são feitas no intuito de pedir a Nhanderu para que não haja perdas na produção do milho Guarani para o próximo ano agrícola e para que as sementes de avaxí eteí possam sempre ser mantidas pelas famílias.
Trabalhando apenas com pequenas quantidades de sementes, os Mbyá não mantém um lugar específico destinado para o armazenamento de seus cultivares. As espigas de milho são armazenadas no interior de suas próprias casas, onde sempre é destinado um local para o fogo, que se mantém aceso dia e noite. É sobre a fumaça da fogueira, pendurados próximos ao teto das casas, que os cultivares já selecionados são mantidos até o próximo ano agrícola.
Em linhas gerais, as áreas de roça Guarani variam em tamanho de acordo com o número de integrantes da família, força de trabalho para as áreas de roça, quantidade de cultivos e cultivares disponíveis, tempo de ocupação da família no local e sobretudo, disponibilidade de área para o plantio. Estas roças, raramente ultrapassam 1,0ha de área cultivada por família/ano agrícola.
Especificamente na aldeia da Ilha do Cardoso, em um período relativo a nove anos (de 1992 - entrada deste grupo na área - até janeiro 2001), todas as áreas de ocupação e roça Guarani, incluindo aquelas que já foram submetidas a pousio, perfazem menos de 10ha.
Com relação à intensidade do uso das áreas de roça na aldeia da Ilha do Cardoso, esta se apresenta intimamente relacionada com o aproveitamento da fertilidade do solo para as plantas cultivadas. À medida que o ambiente de roça vai sendo utilizado e também modificado pelas suas condições de fertilidade do solo, vai havendo uma substituição nos cultivos a serem plantados no local até o tempo em que as áreas devem ser destinadas para pousio.
Manejado gradativamente, ano a ano, um mesmo espaço denominado pelos Guarani de "roça" pode deter em seu interior áreas recém-abertas e áreas com um, dois, três ou mais anos de uso. Os cultivares de avaxí eteí requerem áreas de maior fertilidade, portanto, é comum aproveitar a área de roça já aberta para derrubar a mata do entorno e plantar o milho Guarani. Nos ambientes do interior da roça, anteriormente utilizados para o cultivo do avaxí eteí, cultiva-se, por mais um ou dois anos, o milho não indígena, denominado pelos Guarani de avaxí tupi. Por fim, nos ambientes com três ou mais anos de uso, costuma-se plantar mandioca (M. esculenta) ou submete-lo ao pousio.
Mobilidade: a dinâmica dos sistemas agrícolas Guarani Mbyá e sua relação na conservação in situ do milho cultivado
A mobilidade espacial Guarani Mbyá, representada pelos movimentos migratórios mítico-religiosos ou pela rede de reciprocidades que se forma entre parentes, também se expressa no funcionamento do sistema agrícola praticado pelas famílias que integram este grupo indígena.
Através de um levantamento das rotas e locais de passagem e moradia feito com as primeiras famílias que chegaram a formar a aldeia Guarani Ilha do Cardoso, foi possível perceber alguns aspectos da mobilidade Mbyá que refletem diretamente na composição dos cultivos e cultivares presentes nas áreas de roça familiares.
Família de Marcílio. Não sabendo precisar em quantas e quais aldeias chegaram a residir, a família de Marcílio, desde sua origem, tem em sua rota migratória, várias aldeias Guarani presentes no Paraguai, na Argentina (aldeias de Yvyticó, Campina, Convite, Garuapé, entre outras), no Estado do Rio Grande do Sul (aldeia Guarita; Pinhal, Pacheca), no Estado de Santa Catarina (São Francisco do Sul), no Paraná (Ilha das Peças e Ilha de Superagui) e atualmente, Ilha do Cardoso, onde vive desde o início de 1992. Das plantas Guarani presentes em sua área de roça (Tabela I), as sementes de avaxí eteí (avaxí xï, avaxí takuá, avaxí ovy, avaxí parakau), de kapiá, de yva ü, de yakuá e de kumandá (kumandá xaï), Marcílio diz serem as mesmas sementes que seus pais e sogros seguiam plantando nas aldeias do Paraguai e da Argentina. Chegou a trazer alguns cultivares de batata-doce (jety kara ü e jety mandiô) e sementes de manduvi guasu de algumas aldeias do Paraguai e Argentina. Marcílio diz ter perdido as sementes de manduvi guasu que vieram do Paraguai e da Argentina, mas há cerca de um ano ganhou um pouco de semente de alguns parentes da aldeia Guarani Mbyá de Guaraqueçaba, localizada no estado do Paraná.
Família de Tiago. Tiago nasceu e viveu até os sete anos de idade na Aldeia de Yvytucó, Argentina. Sua trajetória de vida contempla várias aldeias da Argentina, como as aldeias de Tamanduai (onde viveu cerca de sete anos), Rorarito (local onde conheceu sua mulher, Juliana), Paranai (cerca de um ano), Aroyo Nuevo (aproximadamente um ano e meio), Kunhã Piru (dois anos) e Takuapi (um pouco mais de um ano). No que se refere aos cultivares Guarani (Tabela II), Tiago afirma ter carregado suas sementes de avaxí eteí (avaxí xï, avaxí ju), de kumandá ropé e de yakuá há muito tempo e que estas foram adquiridas na aldeia de Kunhã Piru, na Argentina. Depois de viver na Argentina, Tiago e Juliana foram para o Rio Grande do Sul, permanecendo por cerca de quatro anos na aldeia de Cantagalo, local onde Tiago obteve seu cultivar de fumo Guarani (petÿ) e os cultivares de batata-doce (jety ropé e jety kara ü). Logo depois, dirigiram-se para o Estado do Paraná, passando pela aldeia da Ilha da Cutinga (não chegando a residir efetivamente no local); aldeia de Superagui (viveram cerca de um ano); Ilha das Peças e Ararapira, onde passaram cerca de um mês. Nas aldeias do Estado do Paraná, Tiago obteve um cultivar Guarani de mandioca (aipim), mandiô karapeí. Logo após sua estada em Ararapira, a família de Tiago se mudou para o município de Cananéia, passando a viver na aldeia da Ilha do Cardoso. A família de Tiago vive na Ilha do Cardoso desde 1993. Segundo Tiago outros cultivares Guarani, hoje presentes em sua área de roça, foram sendo obtidos durante suas estadas em outras aldeias e também através de algumas viagens em visita aos parentes. O cultivar de amendoim Guarani (manduvi guasu) foi obtido por Tiago em viagem feita a alguns parentes na aldeia de Chapecó, RS, e as sementes de kapiá e yva ü puderam ser obtidas na própria aldeia da Ilha do Cardoso com a família de Marcílio Karaí.
Família de Gregório. Nascido e criado na Argentina, percorrendo com seus pais várias aldeias, Gregório só chegou ao Brasil "depois de moço", ficando cerca de dois anos nas ruínas de São Miguel, Santa Maria, Rio Grande do Sul. Ainda no Estado do Rio Grande do Sul, veio a viver nas aldeias de Camacuã, Cantagalo e Osório. Em Santa Catarina, viveu próximo a Itajaí, dirigindo-se em seguida para o Paraná nas aldeias da Cotinga e da Ilha das Peças. No 1995, a família de Gregório (mulher, filhos, genros e netos) passaram a viver na aldeia da Ilha do Cardoso. De seus cultivos e cultivares Guarani (Tabela III), Gregório diz ter viajado apenas com as sementes de avaxí xï e avaxí ju (procedentes das aldeias que viveu na Argentina e também em Santa Maria, RS) as quais são plantadas há mais de vinte anos pelos vários locais que passou, afirmando que nunca chegou a perder estas sementes. Gregório ainda planeja para os próximos anos viajar até o Rio Grande do Sul, encontrar os seus parentes e trazer consigo mais sementes de avaxí eteí. Segundo consta, os demais cultivos e cultivares Guarani identificados em sua área de roça (jety kara ü, jety mandiô, kumandá xaï, kapiá, yva ü, yakuá) foram obtidos na própria aldeia da Ilha do Cardoso com os parentes que já residiam no local.
Conforme as Tabelas I, II e III, os locais de origem dos cultivares presentes nas áreas de roça familiares Guarani estão relacionados com as várias aldeias que estas famílias vivenciaram (e vivenciam) por um certo período de tempo, bem como as várias aldeias nas quais estas famílias mantiveram (e mantém) seus vínculos sociais e familiares.
Apesar das diferenças apresentadas no número de cultivares presentes nas roças das três famílias e no tempo e local em que estes foram adquiridos, suas formas de aquisição determinam um padrão: apresentam-se relacionadas com o próprio sistema de parentesco Mbyá e sua rede de reciprocidades. Estas podem ser resumidas em: 1) cultivares que foram repassados de geração para geração pelos familiares dos cônjuges e que acompanham os deslocamentos das famílias até o presente, 2) cultivares que foram obtidos durante a ocupação das famílias nas mais diversas aldeias Guarani, e 3) cultivares que foram adquiridos durante visitas a familiares.
Para o caso do milho Guarani, embora haja um grande esforço na manutenção dos cultivares que foram repassados de geração para geração e que acompanham os deslocamentos das famílias, pôde ser notado que constantemente ocorre importação de sementes/cultivares para uma mesma área de roça familiar.
Todos os informantes citaram que a busca por novas sementes pode se dar em função de querer cultivar variedades diferentes e/ou em função de uma perda ocasional na produção de um ou mais cultivares. Conforme pôde ser visto nas Tabelas I, II e III, toda essa busca por novos cultivares envolve localidades/aldeias onde residem indivíduos/famílias com os quais as famílias Guarani da Ilha do Cardoso mantêm algum vínculo de parentesco.
Ainda pôde ser observado que nas situações onde as famílias não saem intencionalmente na busca de novos cultivares ou de mais sementes de uma mesma variedade, estes podem vir a ser importados para as áreas de roça em função das possíveis mudanças que costumam ocorrer na constituição de uma família Mbyá, seja através de laços matrimoniais (unindo famílias distintas e cultivares distintos), ou através das situações onde outros membros familiares (que também possuem sementes próprias) se agregam à família original, plantando conjuntamente em uma mesma área de roça.
Num dado espaço de tempo, uma família nuclear Guarani, constituída do pai, mãe e filhos solteiros, pode mudar sua composição agregando outros membros familiares unidos entre si por laços de consangüinidade [pais, irmãos/irmãs, filhos(as) casadas, netas e netos] e de casamento (genros, noras, cunhados) que anteriormente apresentavam-se residindo em outras localidades. Em um outro dado espaço de tempo, devido aos mais variados motivos socioeconômicos, políticos e culturais, essa mesma família que passou a ser extensa pode voltar à sua constituição nuclear. É a solidariedade entre parentes que cumpre o papel de agregar em determinados momentos os indivíduos/famílias numa determinada aldeia (Ladeira, 1992).
No intuito de "experimentar" o lugar, as pessoas chegam na aldeia e ficam provisoriamente hospedadas na casa daqueles com os quais mantêm relações de parentesco. Este "experimentar" parece não possuir regras definidas em relação ao tempo de permanência no local. O interesse em residir por mais tempo numa determinada aldeia é expresso quando aqueles novos integrantes passam a praticar suas atividades agrícolas. Estes podem formar suas próprias áreas de roça próximas ou ainda, como na maioria das vezes, contíguas àquelas já abertas pelos seus familiares residentes no local.
Conforme retratam as figuras 2 e 3, na Ilha do Cardoso, no período de 1997 à 1999, a família de Tiago mantinha uma constituição nuclear (pai, mãe e filho) (Figura 2). No 2000, esta passou a contar com a presença dos sogros, cunhados e genros, que residiam anteriormente (há cerca de três anos) na aldeia Rio Branquinho, Cananéia, SP (Figura 3). Ainda no ano de 2000, os cultivares de milho da família de Tiago, mais aqueles trazidos pelos novos integrantes, passaram a ser cultivados numa mesma área de roça (Tabela II).
Embora pareça bastante claro que com a importação de novos cultivares ocorre, visivelmente, um aumento da diversidade genética intra-específica, nas áreas de roça Guarani, o real significado desta prática para a conservação dos cultivares de avaxí eteí reside, justamente, na possibilidade de haver novas recombinações gênicas entre populações geneticamente distintas.
Para os Guarani Mbyá, independentemente da origem, forma, tamanho do cultivar, caso este apresente a mesma característica morfológica que incida no seu sistema de nomeação (determinada coloração de grãos), passa a ser considerado pelos próprios como uma "mesma variedade". Considerando que, diferentes localidades de ambiente são habitadas por populações com freqüências cromossômicas claramente diferentes (Dobzhansky, 1973), a vantagem desse sistema de nomeação reside na possibilidade das famílias "juntarem" as novas sementes provenientes de uma outra população geneticamente distinta (outra roça familiar de avaxí eteí) com aquelas de seu acervo original, para cruzarem entre si e formar a próxima geração.
As interações compensatórias resultantes do cruzamento entre indivíduos de populações geneticamente diversas, podem ser interessantes para o desenvolvimento de uma agricultura que é exercida sob condições de mobilidade, como é o caso do sistema agrícola Guarani Mbyá. Para as espécies de fecundação cruzada como o milho, a recombinação traz grandes vantagens à população. Uma população com uma certa variabilidade genética está mais protegida às variações de ambiente, condições climáticas adversas e ao ataque de pragas e patógenos do que seria de se esperar numa população geneticamente mais uniforme (Goodman e Smith, 1987; Paterniani e Miranda Filho, 1987). Toda essa variabilidade genética consiste no principal fator para a capacidade do milho se desenvolver em uma ampla faixa de ambientes, adaptando-se a diferentes condições ambientais (Paterniani et al., 2000).
Cabe ainda citar que, dentre as formas de seleção existentes, a seleção massal é apontada como o método mais eficiente para conservar a variabilidade genética das espécies que estão sendo selecionadas (Paterniani e Miranda Filho, 1987). Para o milho, que é uma espécie altamente alógama, esta forma de seleção, além de apresentar o menor controle sobre as condições ambientais, apresenta também o menor controle parental, permitindo assim uma recombinação gênica totalmente ao acaso entre os indivíduos de uma mesma população.
Um outro fator importante na geração da variabilidade genética para cultivares agrícolas, também citado por Cury (1993), é a mutação e sua fixação nos novos recombinantes, que nas condições normais de cultivo ocorrem espontaneamente, sem causa aparente. Não se pode afirmar aqui nenhum fato na agricultura Guarani que esteja diretamente relacionado com cultivares originários de mutações, entretanto, faz-se necessário evidenciar como é mantida a "diversidade" (produto ou não de mutação) caso seja expressa fenotipicamente.
Dos cultivares citados como "de origem espontânea nas áreas de roça", segundo os Mbyá, estes teriam sido enviados por Nhanderu Tupã. No universo mítico Mbyá, Nhanderu significa "nosso pai", o criador do mundo, das plantas, dos animais, dos lugares. Nhanderu Tupã, significa o enviado de Nhanderu para ser guardião do mundo. Para os Mbyá, na "Terra sem Mal" (Yvy Marãey), lugar de morada de Nhanderu, os cultivos surgem espontaneamente nas áreas de roça (Ladeira, 1992, 2000). No "plano terreno", quando esses "aparecem" nas áreas de roça sem razão ou manipulação genética aparente, são considerados "presentes de Nhanderu Tupã". Tudo indica que os Mbyá concebem os processos biológicos-evolutivos de suas espécies cultivadas expressos fenotipicamente, estritamente em termos simbólicos-culturais. Por estarem intimamente relacionados com o sagrado, estes novos cultivares são mantidos pelos Mbyá. Isto pode ser constatado na tabela II, quando a família de Tiago manteve o cultivar de milho avati pytã, que segundo a própria família "surgiu em sua área de roça porque foi um presente de Nhanderu Tupã, então deve ser conservado".
Por fim, todo o arranjo de atividades que, direta e indiretamente, compõe o sistema agrícola Mbyá, favorece constantemente a manutenção e geração da variabilidade genética de seus cultivares de milho.
Conclusões
A mobilidade espacial está expressa na organização sociocultural dos Guarani Mbyá e no funcionamento de seu sistema agrícola de forma com que a diversidade de cultivos e cultivares Guarani nas roças familiares apresenta-se dinâmica no tempo e no espaço.
Especificamente com relação ao milho Guarani, as práticas (consciente ou inconscientemente adotadas) de selecionar, de transportar (para diferentes ambientes) e importar cultivares para uma mesma área de roça (possibilitadas pela manutenção das redes de troca estabelecidas entre parentes e/ou pelas mudanças na constituição familiar) e de manter as novas variedades que surgem "espontaneamente" nas suas áreas de roça, constantemente mantém e ampliam a diversidade genética intra-específica de suas plantas tradicionalmente cultivadas.
Mesmo que favorecida pelo próprio manejo agrícola Mbyá, a conservação in situ dos cultivares de avaxí eteí se vê vinculada a duas condições fundamentais: 1) à religiosidade Guarani, partindo do pressuposto que o valor cultural atribuído pelos Mbyá ao seu milho cultivado é o fator primordial que contribui para sua manutenção; e 2) à existência de aldeias, situadas em ambientes naturais ainda conservados e favoráveis ao manejo e a manutenção da diversidade dos cultivares agrícolas, que funcionam como verdadeiros bancos de germoplasma in situ. São esses locais e as famílias que lá residem que garantem hoje a circulação dos cultivares entre as mais variadas aldeias. A continuidade desse sistema agrícola depende, portanto, da garantia dessas condições.
AGRADECIMENTOS
Aos Guarani Mbyá da Ilha do Cardoso e das demais aldeias da região Sudeste do Brasil, ao Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Nivaldo Peroni, Maria Inês Ladeira, Maria Bernadette A. Fransceschini, Rosely Alvim Sanches e Juan Francisco Turrientes.
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