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Argos

versión impresa ISSN 0254-1637

Argos v.23 n.45 Caracas dic. 2006

 

Concepções sobre educação, ética e cidadania em Johann Amos Comenius

Alvori Ahlert

Universidade Estadual do Oeste do Paraná –UNIOESTE, Brasil. alahlert@brturbo.com.br. alvoriahlert@hotmail.com

Resumo: O presente texto faz uma leitura interpretativa sobre as concepções de educação, ética e cidadania naobra de Comenius. Dos seus principais escritos sobre educação buscamos elucidar os conceitos de educação, ética e cidadania e as inter-relações entre seus significados. Neste contexto, nossa pesquisa se constitui numa contribuição para a História da Educação e para uma ressignificação da reflexão atual sobre ética e cidadania e seus vínculos com a educação.

Palavras-chave: Comenius, educação, ética, cidadania, História da Educação.

Concepciones sobre educación, ética y ciudadanía en Johann Amos Comenius

Resumen: El presente texto hace una lectura interpretativa sobre las concepciones de educación, de ética y ciudadanía en la obra de Comenius. De sus principales escritos sobre educación buscamos para aclarar los conceptos de educación, ética y ciudadanía y las interrelaciones entre sus significados. En este contexto, nuestra investigación constituye una contribución para la historia de la educación y para una resignificación de la reflexión actual en la ética y la ciudadanía y de sus enlaces con la educación.

Palabras clave: Comenius, educación, ética, ciudadanía, Historia de la Educación.

Conceptions on education, ethics and citizenship in Johann Amos Comenius

Abstract: This text makes an interpretative reading on the conceptions of education, ethics and citizenship in Comenius’s work. From his main writings on education, the concepts of education, ethics and citizenship and the inter-relations between their meanings are elucidated. In this context, our research constitutes a contribution for the History of Education and for a reinterpretation of the current reflection on ethics and citizenship and its links with the education.

Keywords: Comenius, education, ethics, citizenship, History of Education.

Recibido: 16/06/06; aceptado: 20/09/06.

1. Introdução

A obra de Johann Amos Comenius (1593-1670)1 é  um dos patrimônios da história da Pedagogia Ocidentale teve importante contribuição e influência nos processos de formação, educação e pesquisa no período em que a sociedade ocidental passou do feudalismo para o capitalismo. Sua obra está ajustada ao seu tempo, dando respostas ao que o novo demandava. Acreditamos que, tanto suas obras pedagógicas quanto suas obras como reformador social podem, através de uma releitura, iluminar nossas realidades pedagógicas e as perguntas que elas levantam aos educadores. Sua utopia de ensinar tudo a todos, numa proposta essencialmente comunitária e participativa, pode ser fonte para a reconstrução de utopias para nossos dias.

2. Educação em Comenius

As maiores obras de Comenius são a Didática e a Deliberação universal acerca da reforma das coisas humanas. A Didática se subdivide em Didática tcheca e Didática magna. A Deliberação constitui-se de sete partes: Despertar Universal, Iluminação Universal, Sabedoria Universal, Educação Universal (Pampaedia) e Exortação Universal. Entre suas obras sobre educação que mais expressam suas idéias e utopias, estão a Didática magna (1632), na qual propõe uma reforma da escola na busca por um ensino, uma aprendizagem e um método para preparar o indivíduo para a cidadania, partindo da vida religioso-comunitária e fundamentado nas leis e estruturas da natureza; a Pampaedia, que expõe sua reforma educacional e a Deliberação universal, onde traça seus propósitos de reformar a sociedade em consonância com as reformas educacionais.

A proposta educacional de Comenius representa uma transição pedagógico-didática no processo de ensinar e aprender entre os períodos da Idade Média e o início da Modernidade. Para Comenius, a educação era o instrumento apropriado para realizar as reformas sociais necessárias que o momento turbulento e conflituoso exigia. A educação era, assim, o caminho para se chegar à libertação e à salvação de todos. Seu pensamento concebe o ser humano como criatura de Deus, feito à sua imagem e semelhança, e, ao mesmo tempo, como um ser capaz de construir a si próprio através do trabalho. Os princípios gerais de sua didática apresentam, segundo Gasparin,

...o espírito conservador e renovador do momento, ou seja, enquanto, por um lado, há ênfase na memorização, na diretividade total do professor, na exposição docente do conteúdo, na passividade do aluno a quem cabe apenas ouvir, destaca-se, por outra parte, como nova forma de ensino, a imitação da natureza, a observação e a experimentação, os processos das artes mecânicas, os métodos da nova forma de trabalho e da ciência (Gasparin, 1994, p.41).

Comenius é um homem do seu tempo. Seu projeto visava adaptar e harmonizar o ser humano no novo contexto produtivo e conturbado entre os séculos XVI e XVII. Ele buscava ver o ser humano como um todo. Diante das necessidades da construção de uma proposta educativa demandada pelo novo processo produtivo e organização social urbano-industrial, este autor concebeu um conjunto de obras que visavam à construção de uma cidadania para todos, pobres, ricos, homens e mulheres de todas as idades, para que as pessoas todas experimentassem a libertação da ignorância e do sofrimento e, assim, tivessem acesso à salvação segundo sua confissão religiosa.

A obra comeniana foi a busca de um elemento de igualdade pela qual todos os seres humanos deveriam ser considerados iguais em direitos. Para ele a educação era a base para se atingir uma sociedade perfeita, por isso investiu tanto tempo na reforma escolar, pois acreditava que ela era o ponto de partida de qualquer trabalho em favor da humanidade. A educação era vista como um instrumento para garantir as reformas necessárias à sociedade (Ahlert, 2003, p.99).

O projeto de ensinar tudo a todos, proposto pelo teólogo e pedagogo, busca uma superação para os enfados, as mesmices, as agressões a que a educação estava exposta. Neste sentido suas palavras iniciais são de uma atualidade a toda prova quando se tem oportunidade de olhar para dentro da realidade de muitas escolas ainda hoje. Vale a pena transcrever seus propósitos na abertura de sua Didática magna:

A proa e a popa da nossa Didáctica será investigar e descobrir o método segundo o qual os professores ensinem menos e os estudantes aprendem mais; nas escolas, haja menos barulho, menos enfado, menos trabalho inútil, e, ao contrário, haja mais recolhimento, mais atractivo e mais sólido progresso; na Cristandade, haja menos trevas, menos confusão, menos dissídios, e mais luz, mais ordem, mais paz e mais tranqüilidade (Coménio, s.d., p.44).

Comenius carrega, em seus princípios educacionais, centelhas futuristas, que permitem fazer pontes para nossa época com as obras dos grandes educadores humanistas que marcaram o século XX, e ainda são luzes para este novo século. Ao se colocar, como educador, sob a vontade de Cristo, assume uma posição de humildade ausente ou desconhecida de muitos e muitos que se querem educadores hoje. “O meu Cristo sabe que tenho um coração tão simples que não há para mim diferença alguma entre ensinar e ser ensinado, advertir e ser advertido, entre ser mestre dos mestres (se me é lícito falar assim) e discípulo dos discípulos (se acaso posso esperar algum progresso)” (Coménio, p.52).

Aqui não há como não recorrer à obra de Paulo Freire. Ao afirmar que “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (Freire, 1987, p.68), Freire está aprofundando, com mais clareza e entendimento, a postura de Comenius. O educador não apenas educa, mas enquanto educa é educado por meio do diálogo que estabelece com os educandos. Outra referência à humildade como saber necessário à prática educativa é a afirmação de Freire em Pedagogia da autonomia: “O meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade, à sua timidez, que não devo agravar com procedimentos inibidores, exige de mim o cultivo da humildade e da tolerância. Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar o meu desconhecimento” (Freire, 2003, p.67).

Para Comenius, a educação do homem e da mulher é condição sine qua non para a sua humanizacão. “E não sem razão, alguém define o homem um ‘animal’, pois não pode tornar-se homem a não ser que se eduque” (Coménio, p.119). A condição de ser humano passa a ser uma conquista do próprio sujeito na sua interpretação com seus outros junto aos quais forma as virtudes do seu ser humano. “Ninguém acredite, portanto, que o homem pode verdadeiramente ser homem, a não ser aquele que aprendeu a agir como homem, isto é, aquele que foi formado naquelas virtudes, que fazem o homem” (Coménio, p.120).

Também aqui a reflexão nos permite uma aproximação com Paulo Freire, para quem os seres humanos, pela dramaticidade da realidade, são desafiados a problematizarem a si mesmos. Assim descobrem que sabem pouco sobre si mesmos e então se inquietam para saber mais sobre si próprios. Nessa procura por si mesmos se inquietam e indagam e percebem seu inacabamento. Conseqüentemente, a sua abertura para a mudança. Nessa reflexão e descoberta, Freire aponta para o caráter iniludível do processo de humanização. Os seres humanos nascem inconclusos, mas dentro de si trazem a vocação da humanização. Entretanto, esta lhes é negada pela injustiça, pela opressão, pela exploração, pela violência dos opressores. Nesta condição, os seres humanos têm na educação seu caminho privilegiado para superar a distorção histórica da desumanização e desenvolver sua vocação de ser mais ser humano. Freire explicita isso por meio de sua justificativa para uma nova pedagogia: a pedagogia do oprimido.

A nossa preocupação, neste trabalho, é apenas apresentar alguns aspectos do que nos parece constituir o que vimos chamando de pedagogia do oprimido: aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará (Freire, 1987, p.32).

Esta condição educacional, como formadora do ser humano, demanda uma educação formal. Comenius se fundamentou em Lutero ao justificar, na Didática magna, a necessidade de escolarização do ser humano.

Todavia, porque, tendo-se multiplicado tanto os homens como os afazeres humanos, são raros os pais que, ou saibam, ou possam, ou pelas muitas ocupações, tenham tempo suficiente para se dedicarem à educação de seus filhos, desde há muito, por salutar conselho, se introduziu o costume de muitos, em conjunto, confiarem a educação de seus filhos a pessoas escolhidas, notáveis pela sua inteligência e pela pureza dos seus costumes. A esses formadores da juventude, é costume dar o nome de preceptores, mestres, mestre-escola e professores; os locais destinados a esses exercícios comuns recebem o nome de escolas, institutos, auditórios, colégios, ginásios, academias, etc. (Coménio, p.134).

Esta escolarização devia ser acessível a todas as pessoas. Aqui Comenius rompeu as barreiras ideológicas de seu tempo. Historicamente educação era, até então, privilégio para as elites, e do gênero masculino. Na esteira da proposta de Lutero, Comenius propôs uma radicalização da universalização da escola. “Que devem ser enviados às escolas não apenas os filhos dos ricos ou dos cidadãos principais, mas todos por igual, nobres e plebeus, ricos e pobres, rapazes e raparigas, em todas as cidades, aldeias e casais isolados.” (Coménio, p.139). Porque para este humanista a mulher é igualmente criada à imagem e semelhança de Deus, capaz de aprender tal qual o homem, muitas vezes mais sábia que o próprio homem (Cf. Coménio, p.141). A educação escolar deve formar para a autonomia, para que o ser humano não seja somente um espectador desse mundo, mas também um ator, participando de sua transformação. Esta condição aponta para a dimensão da cidadania e da ética presentes na obra de Comenius.

3. Ética e cidadania em Comenius

Para Ester Buffa (2000, p.19), não foi o marxismo o primeiro a desenvolver uma crítica contra as desigualdades sociais decorrentes das relações econômicas, políticas e sociais capitalistas. Já a escolástica, ao reconhecer a igualdade de todos os seres humanos, afirmava que a sociedade se constitui de seres humanos livres, portanto atores da história. “A igualdade básica entre os homens, posta na manufatura, foi expressa a nível de organização do saber escolar por Comenius. Na sua Didática magna (1632), mesmo preservando a distinção das classes sociais, propõe para todos – pelo fato de todos serem homens - um mínimo comum e universal de escolarização padronizada e pública com base no experimentalismo científico” (Buffa, 2000, p.19).

Ao propor uma Didática para ensinar tudo a todos, Comenius deu à educação uma dimensão cidadã. Escolarização tornou-se condição para viver os novos tempos que advinham. A industrialização emergente demandava um ser humano com capacidade de se adaptar ao novo mundo do trabalho e da vida urbana. Neste sentido, Comenius reafirmou os desafios lançados por Lutero e nele apoiou sua argumentação.

Lutero, na sua exortação às cidades do Império, para que constituíssem escolas (em 1535), entre outras coisas, emitiu estes dois votos: Primeiro, que, em todas as cidades, vilas e aldeias, sejam fundadas escolas, para educar toda a juventude de ambos os sexos (precisamente como, no capítulo IX mostra-nos dever fazer-se), de tal maneira que, mesmo aqueles que se dedicam à agricultura e às profissões manuais, frequentando a escola, ao menos duas horas por dia, sejam instruídos na letras, na moral e na religião (Coménio, p.156).

Comenius também se dirigiu aos governantes sobre a necessidade urgente de o Estado assumir compromissos com a educação de todos os concidadãos. Se uma cidade precisa de fortificações para se proteger, formação de quadros para os exércitos, de rios navegáveis para abastecer o seu comércio, muito mais necessário lhe é a educação dos cidadãos para viverem esta realidade. Esta formação para a cidadania implicava, para Comenius, um ensino vinculado ao cotidiano do aluno, isto é, ler e escrever problematizando as coisas, “... juntar as palavras e as coisas” (Coménio, p.295). Isso significava trazer para a sala de aula o mundo da vida, do comércio, do transporte, da fábrica, da natureza.

Portanto, não se ensinem nem se aprendam as palavras senão juntamente com as coisas, da mesma maneira que se vendem, se compram e se transportam vinho juntamente com a garrafa, a espada com a bainha, o tronco com a casca e os frutos com a pele. Efectivamente, que são as palavras senão os invólucros e as bainhas das coisas? Portanto, seja qual for a língua que os alunos aprendam, mesmo a materna, mostremse-lhes as coisas que devem ser significadas com as palavras; e, inversamente, ensine-se-lhes a exprimir, por meio de palavras, tudo o que vêem, ouvem, apalpam e saboreiam, para que a língua e a inteligência caminhem e se desenvolvam sempre a par (Coménio, pp.295-296).

Aqui mais uma vez percebe-se uma ponte entre Comenius e Freire. Trata-se de garantir ao ser humano a condição de “Aprender a dizer a sua palavra”. Com este título Ernani Maria Fiori prefacia a principal obra de Paulo Freire; segundo Fiori: “A alfabetização, portanto, é toda a pedagogia: aprender a ler é aprender a dizer a sua palavra. E a palavra humana imita a palavra divina: é criadora” (Fiori, 1987, p.20). Isso significa proporcionar aos educandos as condições em que se dê a superação do conhecimento no nível da doxa, pelo verdadeiro conhecimento que se efetiva através do logos. Segundo Freire, isso possibilita um constante desenvolvimento da realidade, resultando na inserção crítica na realidade. Configura-se, assim, uma educação problematizadora, que desenvolve o poder de captação e compreensão do mundo e estabelece uma relação dialética com a realidade, transformando a processual-dialética com uma educação que se faz prática libertadora. “A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica a negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo como uma realidade ausente dos homens” (Freire, 1987, p.70).

Segundo Veit-Jakobus Dieterich (1992, pp.512-513), as análises sociais sobre a obra de Comenius vão de um extremo ao outro. Para uns, ele é um pensador muito avançado para seu tempo, pois seu posicionamento representou as raízes das tradições revolucionárias dos movimentos sociais; para outros, ele foi antes um reacionário do que um revolucionário. Por isso, Dieterich entende que sua obra deva ser lida e compreendida a partir de duas tendências: uma moral e outra analítica. A tendência analítica busca as razões da injustiça social nas estruturas econômicas. Já a tendência moral contrapõe a esta o comportamento do ser humano individualista. As tendências analíticas propõem transformações estruturais, enquanto as morais defendem a caridade. O olhar da tendência analítica se estende para uma visão sóciopolítica. Já a tendência moral centra-se no indivíduo.

Aos 26 anos (1619), Comenius abriu suas críticas sociais em Briefe nach den Himmel ou Cartas para o céu. Neste texto, ele expressa o clamor dos pobres oprimidos para o Cristo celestial.

Certamente isto não se sucede com justiça que aqueles (os ricos) possuam abundância, sim inclusive abastança de coisas terrenas, enquanto nós carecemos diante disso... Muitos deles possuem celeiros e despensas lotadas, assim que as previsões são devoradas pelos ratos; nós enquanto isso morremos de fome. Aqueles ricos possuem armários cheios de peles, mantas, vestidos e outras peças de vestuário nos quais as traças roem, enquanto nós andamos seminus. Eles têm cofres cheios de prata e ouro sem que eles tenham que olhá-la em outros, enquanto que nós pobres não sabemos o que fazer com as nossas dívidas (Dieterich, 1992, p. 513).

Dieterich entende que Comenius não lançou nenhum programa revolucionário. Entretanto, também não se omitiu. Seu coração bateu pelos pobres, o que se evidencia na forma ácida com que se dirigiu aos ricos e aos que detinham o poder. Sua crítica contra a injustiça social não foi acompanhada por uma proposta política para a sua superação; sua proposta foi eminentemente pedagógica; ele jogou todas as fichas na educação. Só ela poderia estabelecer uma justiça processual por meio da formação de todos os cidadãos. Por isso, entendia que a educação devia formar a juventude, não para o egoísmo individualista, mas para Deus, para a pessoa e para o próximo. Para ele, isso significava uma educação que preparasse o ser humano para viver em comunidade. “Assim, finalmente, a situação das coisas privadas e das coisas públicas seria feliz, se todos soubessem e quisessem cooperar nos interesses comuns e em tudo e sempre ajudar-se mutuamente. Os homens instruídos sabem e querem fazer assim” (Coménio, p.348).

A ética comeniana teve sua fundamentação na teologia cristã. “Comenius foi teólogo e pedagogo em uma única pessoa” (Henkys, 1993, p.77); seus escritos traziam a marca do diálogo ininterrupto entre teologia e pedagogia. Ele conclui o longo capítulo da obra Pampaedia com um verso do livro de Cânticos de Salomão: “Levanta-te, vento norte, e vem tu, vento sul; assopra no meu jardim para que se derrame os seus aromas (Cantares 4.16a)” (Coménio, p.51). Este fundamento avaliza sua liberdade de pensamento. O vento norte e o vento sul representam o espírito de Deus. Ele ancorou sua reflexão no espírito divino. E o espírito sopra onde quer. Não pode ser seqüestrado. A educação deve, pois, formar a juventude para a liberdade; uma educação que não poderia ter a pessoa como um objeto, mas como um sujeito que se constitui livre e autonomamente. Da mesma forma, também finalizou a apresentação de sua maior obra pedagógica, a Didática magna, rogando a bênção de Deus com o Salmo 66-67, 1-2. Esta obra é perpassada por argumentos teológicos e fundamentações bíblicas. E ele o faz de forma consciente sob este aspecto; ele se defende dessa posição e condição ao afirmar, no início dela:

Se, todavia, houver algum espírito tão importante que pense que é coisa estranha à vocação de um teólogo estudar os problemas escolares, saiba que esse escrúpulo pesou tão fortemente sobre o meu coração a ponto de o fazer sangrar. Apercebi-me, porém, de que não poderia libertarme dele de outra maneira senão prestando homenagem a Deus e pedindo publicamente conselho a todos acerca de tudo aquilo que uma intuição divina me sugeriu (Coménio, p.51).

Assim, sua ética teve como marca o humanismo teológico. A educação por ele propugnada deve formar pessoas magnânimas, com sabedoria, para se aproximarem de Deus. Por isso, dedicou um capítulo de sua Didática magna propondo um Método para ensinar a moral.

4. Considerações finais

A perspectiva ética de Comenius assentou-se sobre um conjunto de valores e costumes morais necessários para a constituição de um ser humano que vivesse e se comportasse segundo os princípios divinos. Para isso a escola deveria ensinar as virtudes, a retidão e a honestidade: “prudência, justiça, fortaleza e temperança” (Coménio, p.344). Para ele, a prudência permite julgar todas as coisas com equidade e sabedoria para que se saiba distinguir o valor de todas as coisas. A temperança requer o equilíbrio no cuidado de si, sabendo dosar comunidade, bebida, sono, vigília, falar e calar conforme a ocasião o requeira. A fortaleza significa o domínio de si mesmo, não incorrendo nas paixões e nos vícios. E a justiça implica a proteção do indivíduo, o direito de cada um ter o que precisa, além de acabar com a mentira e a enganação.

Assim, a História da Educação, no contexto do resgate dos grandes intelectuais e de seu pensamento social e educativo, tem em Comenius a possibilidade de uma ressignificação da educação na sua inseparabilidade com a ética e a cidadania enquanto lugares privilegiados da educação, numa aproximação com a teoria do conhecimento e das propostas pedagógicas de Paulo Freire. Este pensador humanista, que está na raiz do mundo moderno, prenunciou, com suas críticas e propostas, o desenvolvimento de uma sociedade que distanciou o ser humano de si mesmo. Um ser humano que vem perdendo os seus referenciais éticos e a sua base cidadã-comunitária pela ausência da aprendizagem prática destes valores; entregue ao individualismo e ao processo de coisificação efetivado pelo capitalismo industrial e a sua face mercadológica atual e que impõe uma cidadania limitada aos que controlam a economia e a política (o dinheiro e o poder); e uma ética do mercado contra uma ética humanista e inclusiva, capaz de respeitar as diferenças e reivindicar dignidade e justiça para todos os seres humanos, que são temas centrais na obra freireana em sua busca por mais ética e cidadania. Para Comenius e Freire esta realidade passa pela educação.

Nota

1 As referências ao nome do autor aparecem de diferentes formas em nosso texto. Quando nós nos referirmos a ele, usaremos o nome de Comenius. Nas referências bibliográficas mantemos o nome conforme o autor o cita ou segundo a edição de sua obra.

Bibliografía

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