Interciencia
versión impresa ISSN 0378-1844
INCI v.27 n.2 Caracas feb. 2002
0378-1844/02/02/076-04
Recibido: 25/09/2001. Aceito: 15/01/2002
APROPRIAÇÃO SOCIAL DA CIÊNCIA NA IDADE DA TECNOLOGIA
Henrique Lins de Barros
PALAVRAS CHAVES / Apropriação Social da Ciência / Divulgação da Ciência / Globalização / Ciência e Tecnologia /
Henrique Lins de Barros. Doutor em Física, Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Pesquisador Titular, Ministério de Ciência e Tecnología. Endereço: Museu de Astronomia e Ciências Afins. Rua General Bruce 586, São Cristóvão. 20921-030 Rio de Janeiro. Brasil. e-mail: hlins@openlink.com.br
Resumo
O impacto de altas tecnologias disponibilizadas para cada vez maior número de pessoas leva-nos a refletir sobre qual o atual papel da divulgação da ciência. A apropriação social da ciência tem agravado a distância entre um pequeno e seleto grupo de pessoas e a grande massa, que se utiliza da tecnologia sem, contudo, ter qualquer compromisso com as implicações decorrentes. O presente trabalho procura analisar o quadro atual e propor uma nova função social para os programas de divulgação da ciência.
Summary
The impact of high technologies available to an ever increasing number of people leads us to reflect upon the present role of science dissemination. The social appropriation has increased the gap between a reduced and select group of people and the masses at large who, however, utilize the technology without any commitment to its consecuences. The present work aims at the analysis of the present situation and proposes a new function for the science dissemination programs.
Resumen
El impacto de las altas tecnologías puestas a disposición de un número cada vez mayor de personas nos lleva a reflexionar sobre cuál es el papel actual de la divulgación de la ciencia. La apropiación social de la ciencia ha aumentado la distancia entre un pequeño y selecto grupo de personas y la gran masa que, sin embargo, utiliza la tecnología sin tener compromiso alguno con las consecuentes implicaciones. El presente trabajo procura analizar el cuadro actual y propone una nueva función para los programas de divulgación de la ciencia.
A imagem das luzes da Terra, divulgada pela Nasa na rede Internet, pode ser interpretada como um ícone do mundo tecnológico (Figura 1). Trata-se de uma imagem irreal, pois a Terra aparece em toda a sua extensão no período noturno. Podemos discernir com facilidade algumas regiões do planeta: os Estados Unidos, a Europa, o Japão e a Índia, a costa leste da América Latina. A África, a Amazônia, parte da Ásia e a Oceania estão quase ausentes, tirando alguns poucos pontos luminosos relativos a grandes cidades, como Johannesburgo. Trata-se de uma imagem emblemática uma vez que ela representa os locais em que o desenvolvimento tecnológico está presente com maior intensidade. Nela vemos em destaque as luzes que o homem produz, produto da apropriação social do desenvolvimento científico e manifesto pelo uso crescente de diferentes tecnologias que têm, nas diversas formas de energia, seu alimento. O desenvolvimento tecnológico tem se baseado na disponibilidade de energia elétrica para diferentes usos e a iluminação do espaço público e privado é um dos aspectos de maior visibilidade do progresso no último século. Luz e velocidade foram, a partir de fins do século XIX, as grandes vedetes do progresso.
O século XX inicia-se, dessa forma, sob o impacto de aplicações tecnológicas que afetam toda a sociedade, mas é preciso esperar mais meio século para que estas intervenções ganhem espaço na sociedade. Como Granger (1994), referindo-se ao século XX, aponta (p. 12): "E esta segunda metade do século talvez não seja particularmente fértil em novidades fundamentais, cientificamente revolucionárias. Sem dúvida, ela é grandemente tributária dos avanços ocorridos no início do século ou no final do século passado. Mas ela é excepcionalmente rica em desenvolvimento e em aplicações, e é esta riqueza que lhe pode valer, com todo o direito, o epíteto de Idade da ciência".
O desenvolvimento de aparatos técnicos exige, por sua vez, a abertura de mercados que dependam e sintam a necessidade de utilizar as novidades disponibilizadas. E para que isto possa ocorrer torna-se fundamental não só divulgá-los amplamente, como instrumentar o usuário que não possui, em princípio, o conhecimento básico essencial para fazer bom uso do novo produto. É preciso, para manter o percurso do progresso baseado no produto tecnológico produzido em massa, instruir o maior número de pessoas sem o quê o custo de produção em série torna-se proibitivo. Programas de difusão do conhecimento e de ensino em espaços não formais assumem papel de importância econômica e ganham um novo perfil; é preciso "colocar a mão", sentir o experimento realizar-se, para que o leigo possa ter noções mínimas que permitam a ele utilizar aparelhos construídos com base em princípios científicos. Mas, no rumo da especialização e da produção de aparelhos cada vez mais complexos, a necessidade do usuário gradualmente muda. Não se pode esperar que uma pessoa sem formação especializada adquira em breve período de experiência capacidade para compreender a sofisticada arquitetura de aparelhos que hoje são comuns e de uso difundido. Um novo momento surge em fins da década de 1980 quando as tecnologias da informatização e da miniaturização assumem um papel fundamental em todas as atividades das sociedades tecnologicamente desenvolvidas. Os novos produtos disponibilizados possuem tal complexidade que não se pode esperar que mesmo pessoas com formação técnica consigam entender plenamente o funcionamento de todos os seus componentes.
A partir desse momento surge uma nova necessidade, mais prática, mais pragmática, que irá definir os programas de divulgação da ciência. A divulgação, eficiente e bastante intensa, do século XIX, caracterizada pelo grande número de publicações e de palestras públicas, tinha como público pequena parcela da sociedade letrada e que dispunha de tempo livre para se aprofundar em diferentes aspectos da ciência e, com isso, ampliar o seu patrimônio cultural. Foi uma divulgação praticamente monopolizada por escritores e jornalistas, com alguma formação técnica, e realizada por periódicos que tiveram grande aceitação e iniciavam a utilização de imagens (desenhos, litografias, xilogravuras, rotogravuras, no início, e fotografias, mais recentemente).
No início do século XX inicia-se uma nova tendência: passa a ser indispensável difundir o conhecimento científico para permitir que um maior número de pessoas usufruam da massa de novos artefatos, e que só poderiam ser desenvolvidos com a produção em grande quantidade. Não se trata somente de um investimento para o aumento do patrimônio cultural, pois tem como objetivo paralelo condicionar o usuário às particularidades de uso de um determinado aparelho. Nesse momento, e devido às características dos novos bens de consumo, os princípios básicos da ciência serviram para demonstrar que tal ou qual procedimento era mais adequado e viabilizava o manuseio da crescente coleção de inventos que se encontravam disponíveis. Para isso, o contato com o experimento em si e com a visualização do fenômeno foi a forma mais eficiente para se desmistificar o funcionamento de máquinas, além de demonstrar as enormes possibilidades futuras que a tecnologia podia oferecer. Mas a partir do momento em que não se tem mais acesso aos componentes dos aparelhos, na medida em que as próprias teorias são escolhidas de acordo com a necessidade1, a possibilidade de compreensão do funcionamento de um artefato de alta tecnologia se perde e é preciso entender a função e não mais o funcionamento.
1 Como diz Heizenberg: "Nós decidimos, pela seleção do tipo de observação empregado, quais os aspectos da natureza que deverão ser determinados e quais os que serão apagados... O resultado novo mais importante da Física nuclear foi o reconhecimento da possibilidade de aplicar tipos de leis naturais inteiramente diversos, sem contradição, a um único e mesmo evento físico". Citado por Arendt (1972).
Ao mesmo tempo, os meios de comunicação de massa introduziram uma nova demanda. O rádio e a televisão têm uma penetração em todas as camadas sociais e leva às casas notícias e informações. A característica destes meios, entretanto, é a de não se permitir manter um diálogo: escuta-se ou vê-se, mas não existe a possibilidade de interferir no discurso. Além disso, são formas que não aceitam uma releitura ou um tempo de reflexão individual, pois a informação apresentada caminha no seu tempo próprio. É, assim, uma forma unilateral, em que o espectador ou o ouvinte é simplesmente informado. E mais, essa informação é apresentada sem qualquer seleção do conhecimento prévio do usuário. Toda a sociedade, sem distinção de classe social, raça, crença, gênero ou idade, acaba por receber a mesma informação fazendo com que o debate e a reflexão venha a ocorrer no espaço em que ela é recebida. O grupo, então, é o intérprete da informação, e o faz sem a mediação de qualquer especialista. Essa informação não trabalhada tem o efeito de sedimentar, muitas vezes, noções e crenças que não tiveram sua origem no âmbito da ciência. O resultado é o ressurgimento de velhos saberes que distorcem o conteúdo científico da informação e realçam a importância de outras tradições.
Finalmente, a imagem social da ciência nesse início de século é totalmente oposta há de cem anos atrás. De fato, nos últimos anos do século XIX e primeira metade do século seguinte a ciência tinha um papel social importante, pois era ela que se propunha a resolver os problemas que se avolumavam. Seus avanços foram, sem dúvida, de fundamental importância para a melhoria da qualidade de vida. Foi a partir da compreensão científica de vários processos que se conseguiu desenvolver novas formas de tratamento, de aumentar a produção agrícola, de permitir o crescimento dos grandes centros urbanos, de, enfim, dar resposta aos desafios de um mundo baseado no progresso tecnológico. Mas, a partir da segunda metade do século passado, os problemas advindos do uso de tecnologias novas introduziram gradualmente uma visão pouco otimista a ponto, por exemplo, do historiador Fernández-Armesto (1999) poder afirmar (p.840): "O progresso científico tem sido, na melhor das hipóteses, decepcionante estorvando-nos com problemas sociais e morais aparentemente insolúveis; ou, na pior das hipóteses, alarmantes -, ameaçando-nos com o domínio de máquinas artificialmente inteligentes ou mutantes humanos criados pela engenharia genética".
Esta mudança de opinião não ocorre por acaso. Está associada ao desenvolvimento acelerado que a tecnologia imprimiu. Não somente a tecnologia da informação com o seu discurso futurista de um mundo globalizado. Para Eric Hobsbawm (2000), em entrevista concedida ao jornalista italiano Antonio Polito, a "globalização" está associada ao "surgimento do transporte de carga por aviões". E, se olharmos retrospectivamente, veremos que a locomoção aérea mal completou um século (Lins de Barros, 2000). De fato, exatamente há cem anos foi realizada a primeira demonstração de vôo controlado, no caso, por um dirigível inventado pelo brasileiro Alberto Santos Dumont (Figura 2). Em menos de cem anos a tecnologia do vôo cresceu e se expandiu, permitindo encurtar o tempo de viagens e do transporte como jamais foi imaginado, alterando os hábitos de todos: "O exemplo mais óbvio, que nos afetou a todos, é o fim da sazonalidade dos produtos agrícolas. Hoje, podemos importar frutas tropicais, amoras ou morangos, independentemente da estação do ano. O transporte aéreo tem a velocidade necessária para colocá-las ainda frescas em nossas mesas" (Hobsbawm, 2000, p. 71).
Nessa velocidade de transformação não há tempo para se assimilar; vive-se com a sensação de que tudo pode ser mudado e que se tornará obsoleto mesmo antes de ser utilizado. Uma velocidade tão grande que não permite voltar-se para as experiências passadas e o passado, ele próprio, assume o papel de um produto que deve ser preservado e valorizado a partir de alguns marcos sobreviventes. É o que Hobsbawm (1995) chama de viver num "presente contínuo" e Sevcenko (2001) encontra a imagem de se estar no "loop da montanha russa". Sem se ter tempo de se recuperar os valores tradicionais perde-se o significado dos elementos que constroem a própria identidade, seja individual, seja coletiva.
A Idade da ciência parece ter cedido lugar à Idade da tecnología (Lins de Barros, 2001), uma vez que é esta última que hoje constrói o novo imaginário social. Uma época em que se espera controlar as desconcertantes crises que poderão comprometer a existência do homem na Terra surgidas a partir da adoção da aplicação da ciência e da obtenção de novas tecnologias nos campos da genética, da robótica, da informática, dos novos materiais, da produção de medicamentos e da manipulação de alimentos. É interessante notar que muitas das grandes inovações que são apresentadas hoje tiveram sua invenção ou sua idealização ainda no século XIX. O que a tecnologia permitiu foi realizá-las de forma eficiente e viabilizá-las para uso por parte da população.
A ciência, com seu discurso cada vez mais abstrato, parece, antes, convidar o ouvinte a buscar o significado em seus valores tradicionais, como alerta Lévi-Strauss (1993, p. 12): "Para o homem, volta a existir, portanto, um mundo sobrenatural. Os cálculos e experiências dos físicos certamente demonstram sua realidade. Mas essas experiências só adquirem sentido quando transcritas em linguagem matemática. Aos olhos dos leigos (ou seja, de quase toda a humanidade), esse mundo sobrenatural apresenta as mesmas propriedades que o dos mitos: tudo acontece de um modo diferente do que no mundo comum e, freqüentemente, ao inverso... Do modo mais inesperado, é o diálogo com a ciência que torna o pensamento mítico novamente atual".
A difusão da ciência neste cenário torna-se parcialmente ineficaz e contribui, de certa forma, para segregar aqueles que possuem um patrimônio cultural capaz de vislumbrar o significado da explicação daquele que, por não possuir esse patrimônio, recupera nos mitos tradicionais um novo significado, como Lévi-Strauss (1993) deixa claro quando comenta (pp. 10-11): "Somos informados de que o elétron palpita 7 milhões de bilhões de vezes por segundo, que pode ser ao mesmo tempo onda e corpúsculo, existir simultaneamente aqui e alhures, que as combinações químicas transcorrem num tempo mensurável, o qual, em relação a um segundo, equivale à proporção entre esse e 32 milhões de anos, que, no outro extremo da escala cósmica, nosso universo tem um diâmetro conhecido de uma dezena de bilhões de anos-luz, que nossa galáxia e suas vizinhas se deslocam a uma velocidade de 600 km por segundo, atraídas por corpos portadores de nomes fabulosos como Grande Atrator, Grande Parede, que se supõe pesados o suficiente para produzir tal efeito (mas cuja ordem de grandeza contraria todas as idéias correntes quanto ao modo como o universo se formou). Tais afirmações têm um sentido para o especialista, que não sente necessidade de traduzir suas fórmulas em linguagem comum. O leigo minimamente capaz de honestidade intelectual confessará que essas são, para ele, palavras ocas, que não correspondem a nada de concreto nem de que se possa ao menos fazer uma idéia". Ou, como frisa François Jacob (1979, pp. 147-148): "Eu creio que o cérebro humano tem uma exigência fundamental: a de possuir uma representação unificada e coerente do mundo que o envolve, bem como das forças que animam o mundo. Os mitos, como as teorias científicas, respondem a essa exigência humana. Nestes casos, e contrariamente aquilo que se pensa, é necessário explicar o que se vê a partir do não se vê, o mundo visível por um mundo invisível que é sempre produto da imaginação. Por exemplo, podemos olhar o raio como a expressão da cólera divina ou como uma diferença de potencial entre as nuvens e a Terra; podemos considerar uma doença como resultado de um olhar lançado sobre uma pessoa ou como resultado de uma infecção viral, mas, em todos os casos, o que se invoca como causa ou sistema de explicação são forças invisíveis que são reputadas para reger o mundo. Por conseqüência, o que opera num mito ou numa teoria científica, todo o sistema de explicação é produto da imaginação humana. A grande diferença entre o mito e a teoria científica, é que o mito congela. Uma vez imaginado, ele é considerado como a única explicação do mundo possível... Uma teoria científica funciona de maneira diferente. Os cientistas se esforçam para confrontar o produto de sua imaginação (a teoria científica) com a "realidade", quer dizer, a prova dos fatos". A teoria científica é, assim, efêmera: dura enquanto suas previsões foram confirmadas por experiências cada vez mais precisas. Este aspecto permite que a ciência progrida e não se congele. "Mito e ciência exercem, em certa medida, a mesma função. Uns e outros fornecem ao espírito humano uma certa representação do mundo e das forças que o animam. Ambos delimitam o campo do possível... É provavelmente uma exigência do espírito humano ter uma representação do mundo que seja unificada e coerente. Na sua falta aparecem a ansiedade e a esquizofrenia. E é preciso reconhecer que, em matéria de unidade e de coerência, a explicação mítica é muito superior à científica" (Jacob, 1985, pp. 23-25).
Aqui chegamos a um ponto importante: a ciência gradualmente ampliou seu objeto de interesse. No surgimento da ciência moderna, a partir dos trabalhos de Galileu, a cosmovisão européia passou por uma grande perturbação (Koyré, 1973): a própria idéia de cosmos foi profundamente alterada o que causou uma reação por parte do saber estabelecido. No século XIX as idéias evolucionistas causaram grande impacto social ao permitir se pensar que o ser humano teria uma origem dentro da história do mundo (Sepkoski, 1993). A noção de um tempo profundo (Gould, 1987), tempo de extensão geológica, foi também uma revolução, pois subvertia todo o discurso baseado na tradição. Na década de 1920 a ciência entrou no campo da própria criação, seja do próprio universo, seja da vida. Temas que tinham seu campo bem definido na discussão metafísica e que a ciência, com sua tradição experimental, não ousava entrar até mesmo pela impossibilidade de se recorrer ao experimento controlado para testar a validade de hipóteses. Mas o universo einsteiniano alterou esse quadro e a observação de entidades distantes, como galáxias, permitiu "ver" o passado. E, ao se admitir a historicidade no campo das ciências exatas, permitiu se construir cenários plausíveis de como seriam as condições terrestres em tempos distantes, e, a partir daí, se fazer conjecturas sobre a origem da vida na Terra. A ciência moderna, dessa forma, não se satisfez em buscar uma ordem do mundo observável, mas ampliou seu horizonte e procurou encontrar a gênese desse mundo. O discurso científico avançou a fronteira existente entre o saber produzido pelo homem a partir de uma racionalidade matemática e aquele que tem no mito e nas tradições sua fonte de inspiração.
Divulgar a ciência, difundi-la pelos meios de comunicação que não encontram barreiras no seio da sociedade, é uma imposição de um determinado ponto de vista aceito por uma parcela esclarecida cientificamente da população sobre uma grande maioria que não possui meios de compreensão da linguagem científica. A divulgação da ciência tem dessa forma, um outro compromisso: um compromisso ligado à construção dos elementos da cultura de nossa época, não podendo ignorar que a própria ciência é uma das mais marcantes características dessa cultura.
A difusão da ciência, dessa forma, invade territórios perigosos e pode exacerbar posições antagônicas, como se pode ver no surgimento de movimentos fundamentalistas que repudiam as conclusões de teorias geradas pelo conhecimento que a ciência moderna assume, no momento, como válidas. Por outro lado, o produto de tecnologias produzidas pela comunhão entre o saber e a aplicação do método científico para dar conta de demandas específicas, não possui a mesma carga cultural ou religiosa. Podem, sem nenhum desconforto, ser utilizadas sem que se tenha consciência do conteúdo que as gerou. Aparecem muito naturalmente como artefatos úteis que facilitam ou permitem determinada realização de uma tarefa, seja ela a de se comunicar à distância, seja a de ser transportado em menor tempo, ou a de permitir que se enxergue na escuridão. Mas esses avanços se apresentam como artefatos que se permitem de serem utilizados sem que se desconstrua a visão de mundo.
A difusão da ciência tem, assim, um desafio importante que deve ser ultrapassado: não pode ser um diálogo em uma direção, em que uma restrita camada da sociedade impõe seu discurso hermético sobre uma grande maioria de leigos. Ela deve estar com o ouvido atento aos demais discursos sobre o mundo para permitir que se estabeleça um real diálogo entre as partes, pois ela é uma entre as várias visões de mundo que coexistem. E mais, a ciência não se propõe, nem nunca se propôs, a atingir uma explicação total do mundo; ou seja, ela não pode ser lida pelo não especialista, pelo "leigo minimamente capaz de honestidade intelectual", como caracteriza Lévi-Srauss (1993), como o mito do mundo moderno e sim compreendida como uma busca permanente de uma descrição da "realidade". A difusão dos avanços tecnológicos, por seu turno, como tem sido realizado, é um discurso unilateral que visa ao treinamento de maior número de pessoas no uso de novos produtos e, dessa forma, atinge uma seleta camada da população que pode aspirar a usufruir as novas facilidades. A grande maioria da população mundial não tem recursos que permitam participar de um modelo que demanda altas somas de recursos para implementar as novas tecnologias. Essa população estará excluída do uso de tecnologias como pode ser visto, emblematicamente, na imagem das luzes da Terra.
Figura 1: Imagem das luzes da Terra mostrando o alto grau de desnível tecnológico existente no mundo moderno. A luz elétrica, símbolo do progresso em fins do século XIX, reflete hoje a enorme concentração de riqueza produzida pela tecnologia.
Figura 2: O dirigível no 6 de Santos Dumont contornando a Torre Eiffel em 19 de outubro de 1901. Santos Dumont ganhou o prêmio Deutsch de La Meurte ao realizar o primeiro vôo controlado da história da aviação a uma velocidade média de 22 km/h. Hoje, um avião comercial atinge com facilidade a marca de 800 km/h. (Foto coleção do autor).
REFÊRENCiAS
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