Interciencia
versión impresa ISSN 0378-1844
INCI v.28 n.3 Caracas mar. 2003
INSETOS COMO FONTES DE ALIMENTOS PARA O HOMEM: VALORAÇÃO DE RECURSOS CONSIDERADOS REPUGNANTES
Eraldo Medeiros Costa-Neto
Eraldo Medeiros Costa-Neto. Biólogo, Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente, UFAL. Doutorando em Ecologia e Recursos Naturais, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor Assistente, Etnobiologia, Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Endereço: UEFS, Departamento de Ciências Biológicas, Km 3, BR 116 CEP 44031-460 Feira de Santana, Bahia, Brasil. e-mail: eraldont@mail.uefs.br
Resumen
La entomofagia o el uso de insectos como alimento es analizada, tomando en cuenta la importancia nutritiva que los insectos pueden ofrecer para superar el hambre y la desnutrición en muchas partes del mundo. Cerca de 1509 especies de insectos comestibles han sido registradas en casi 3000 grupos étnicos distribuidos en más de 120 países. El mayor grupo de insectos comestibles es el de los coleópteros (443 especies), seguido por los himenópteros (307 especies), ortopteros (235 especies) y lepidópteros (228 especies). Diversos estudios demostraron que la "carne" de los insectos contiene cantidades satisfactorias de proteínas y lípidos, y son ricas en sales minerales y vitaminas. No obstante, la aversión a los insectos comestibles hace que una cantidad considerable de proteína animal no sea disponible, ya que el fenómeno es visto como práctica de pueblos "primitivos". Es necesario modificar las ideas acerca de los insectos e incluirlos en la alimentación diaria.
Summary
Entomophagy or the use of insects as food is analyzed by taking into account the nutritive importance that insects can offer to overcome both hunger and malnutrition in many parts of the world. About 1509 species of edible insects have already been recorded in nearly 3000 ethnic groups distributed in more than 120 countries. The largest group of edible insects is comprised of Coleopterans (443 species), which is followed by Himenopterans (307 species), Orthopterans (235 species), and Lepidopterans (228 species). Studies have shown that the "flesh" of insects contains satisfying amounts of proteins and fats, and they are rich in minerals and vitamins as well. However, the aversion to the edible insects is the reason why a considerable amount of animal protein becomes unavailable since the phenomenon is regarded as "primitive peoples practice". It is necessary to change the ideas we have concerning insects and include them in ordinary meals.
Resumo
A entomofagia ou o uso de insetos como alimento é analisada, levando-se em conta a importância nutritiva que os insetos podem oferecer para superar a fome e a desnutrição em muitas partes do mundo. Cerca de 1509 espécies de insetos comestíveis já foram registradas em quase 3000 grupos étnicos distribuídos em mais de 120 países. O maior grupo de insetos comestíveis é o dos coleópteros (443 espécies), seguido pelos himenópteros (307 espécies), ortópteros (235 espécies) e lepidópteros (228 espécies). Estudos demonstram que a "carne" dos insetos contém quantidades de proteínas e de lipídeos satisfatórias e são ricas em sais minerais e vitaminas. Porém, a aversão aos insetos comestíveis faz com que uma quantidade considerável de proteína animal fique indisponível, uma vez que o fenômeno é visto como prática de povos "primitivos". Necessita-se mudar a idéia sobre os insetos e incluí-los na alimentação do dia-a-dia.
Palavras chave / Antropologia Alimentária / Comportamento Alimentário / Entomofagia / Etnoentomologia /
Recebido: 30/10/2002. Modificado: 23/01/2003. Aceito: 11/02/2003
Aentomofagia é um fenômeno historicamente antigo e geograficamente disseminado (Posey, 1986; Dufour, 1987; Dwyer e Minnegal, 1991; Chen, 1994; Pemberton, 1995; Turner, 1996; Lenko e Papavero, 1996; Lathan, 1999). Pode-se dizer que a entomofagia surgiu com os primeiros hominídeos e atualmente está presente em mais de 100 países ao redor do globo (Ramos-Elorduy, 1998). O povo Asteca, por exemplo, alimentava-se com 91 espécies de insetos, preparando-os de diversas maneiras: assados, fritos, em molhos, apenas fervidos ou como condimento de algum prato. Algumas espécies até eram armazenadas secas. Com a chegada dos conquistadores espanhóis, no entanto, muitos dos alimentos indígenas foram qualificados negativamente e então esquecidos e/ou depreciados (Ramos-Elorduy e Pino, 1996). Esses autores registraram que, no século XVIII, insetos eram dados como castigo às noviças do Convento de Puebla, México.
Das centenas de milhares de espécies de insetos já catalogadas, mais de 1500 são utilizadas como alimento por cerca de três mil grupos étnicos em mais de 120 países (Ramos-Elorduy, 2000). De acordo com a autora, o maior grupo de insetos comestíveis é o dos coleópteros (443 espécies), seguido pelos himenópteros (307 espécies), ortópteros (235 espécies) e lepidópteros (228 espécies). Dez por cento dessas espécies são cosmopolitas e as restantes estão restritas a determinadas zonas geográficas, das quais 12% são espécies aquáticas e 78% são terrestres (Ramos-Elorduy, 1996). Uma revisão enciclopédica do uso de insetos como alimento nas diversas culturas do mundo foi publicada (DeFoliart, 2002). Os insetos são consumidos nos diferentes estádios de seu desenvolvimento: de alguns se consomem os ovos; de outros, as larvas ou então as larvas e pupas; de outros, somente os adultos. Produtos elaborados e/ou excretados por eles, como o mel e o maná, também são largamente consumidos.
A maioria dos seres humanos, no entanto, considera o consumo de insetos como prática de "gente primitiva". O problema principal é que, por razões estéticas e psicológicas, muitos insetos são considerados animais nocivos, sujos, transmissores de doenças e vistos como pragas (a abelha melífera, Apis mellifera L., é uma exceção). A repugnância pelo consumo de insetos, muitas vezes alimentada pelos comerciais de televisão que convidam ao uso indiscriminado de inseticidas, faz com que uma quantidade considerável de proteína animal torne-se indisponível àquela parcela da população mundial que sofre com a fome e a desnutrição.
As muitas interpretações do que seja alimento, e as crenças que cercam algumas delas, determinam os hábitos alimentares e o grau de nutrição, os quais também são influenciados por fatores políticos internos e externos e circunstâncias pessoais, culturais, econômicas etc. (Conconi, 1984). Com relação aos aspectos culturais, tabus associados ao consumo de insetos foram registrados. Por exemplo, membros do clã do Ferro pertencente à tribo Ioruba, no estado nigeriano de Kwara, são predominantemente adoradores de Ogum, deus do ferro. Segundo os crentes, Ogum não aceita animais ou outras criaturas que não têm sangue. Desse modo, os filhos e demais parentes dos ferreiros (que constituem a maioria dos adoradores de Ogum) são proibidos de tocar ou comer grilos da espécie Brachytrupes membranaceus Drury (Fasoranti e Ajiboye, 1993). A comunidade Ioruba acredita que comer grilos é um ato pueril, daí o adágio de que "um fazendeiro ou um pai que divide uma refeição de grilos com seus filhos também estaria preparado para participar de tarefas domésticas, tais como carregar cestas para a fazenda". Por outro lado, o consumo de grilos na região de Omido faz com que os indivíduos fiquem mais espertos: o fluido branco dentro desses insetos, conhecido como moyiomoyio, supostamente capacita o consumidor a calcular com mais precisão e solucionar problemas aritméticos (Fasoranti e Ajiboye, 1993).
Os aborígines da tribo Anunta, da Austrália Central, contêm seis grupos associados com totens de insetos, os quais são proibidos como alimento. Comer um desses insetos é a mesma coisa que comer os próprios ancestrais. O único membro que pode comer o totem é o chefe de cada grupo (Berenbaum, 1995). Entre os índios Tukano que habitam a Amazônia colombiana, formigas e soldados de cupins constituem o único alimento de origem animal permitido a dietas limitadas em casos de doenças, ritos de iniciação de adolescentes e de meninas menstruadas (Dufour, 1987).
Observa-se que as atitudes freqüentemente direcionadas à prática entomofágica são padrões comportamentais transmitidos socialmente (Dunkel, 1998). Descola (1998) diz que "comer ou não comer insetos depende da variabilidade das escolhas individuais no interior de uma norma aceita ou da acessibilidade do animal". Para desmistificar o preconceito contra os insetos comestíveis, diversos autores vêm divulgando a importância desses artrópodes tanto como alimento para a espécie humana quanto como ração para os animais domésticos e de criação (DeFoliart, 1999). De um modo geral, as sociedades não-entomofágicas estão sendo cada vez mais expostas ao fenômeno da entomofagia por meio de documentários, filmes, entrevistas na mídia, palestras, festivais gastronômicos etc. (Dunkel, 1998). Por exemplo, em dezembro de 2000, mais de 2680 entomólogos puderam provar diferentes iguarias à base de insetos (FIN, 1998). O tema também vem sendo incorporado em muitos cursos em diversos campi universitários e institutos de pesquisa. Um estudo demonstrou que indivíduos são capazes de comer insetos, desde que apresentados em alguma forma disfarçada: um grupo de estudantes de entomologia foi apresentado a alguns insetos cozidos. Quanto mais disfarçado era o inseto, tanto mais prontamente os estudantes o saborearam; dessa forma, insetos cobertos com chocolate foram escolhidos como um dos pratos favoritos e considerados como bastante apetitosos pelo grupo (Myers, 1983). Outra experiência foi realizada na Bahia. Um grupo de estudantes de etnobiologia preparou um brigadeiro (doce que consiste em bolinhas feitas à base de leite condensado e chocolate, cobertas com chocolate granulado) contendo farelo de grilo (Gryllus sp.), distribuindo-o entre colegas, professores e funcionários da Universidade Estadual de Feira de Santana; á princípio, grande parte dos provadores relutou em consumir tais doces, prevalecendo a reação de nojo (Costa-Neto, 2000).
Os insetos também são consumidos indiretamente através da ingestão de alimentos contaminados. Fragmentos de asas de barata, abelha e formiga, pernas e antenas de grilos e de baratas etc podem ser encontrados. Isso se deve à impossibilidade da completa remoção de partes corporais de insetos dos produtos alimentícios. Nos Estados Unidos, a FDA admite como aceitável o encontro de cinco insetos ou partes de insetos para cada 100g de manteiga de maçã e de 30 fragmentos de insetos por 100g na manteiga de amendoim (Myers, 1983). Os vegetarianos indianos obtêm sua dose de vitamina B12 de insetos e bactérias que normalmente contaminam seus alimentos (Allport, 2000).
Por que Comer Insetos?
Os insetos constituem um recurso alimentar natural renovável e são consumidos como suplemento alimentar ou como constituinte principal da dieta de diferentes povos em muitas regiões do mundo. Diversos estudos têm mostrado que a "carne" dos insetos é composta das mesmas substâncias encontradas na carne dos animais vertebrados, como o boi, o porco, a galinha e o peixe (DeFoliart, 1988). Uma das principais diferenças está no valor quantitativo: um inseto, como a formiga da espécie Atta cephalotes L., por exemplo, possui 42,59% de proteínas contra 23% no frango e 20% na carne bovina (Conconi e Rodríguez, 1977). Os insetos contêm quantidades consideráveis de proteínas e de lipídeos e são ricos em Na, K, Zn, P, Mn, Mg, Fe, Cu e Ca (Conconi e Rodríguez, 1977; Tabela I). A formiga-tecelã (Oecophylla smaragdina Fab.) contém 42% a 67% de proteínas e é rica em aminoácidos, sais minerais e vitaminas. A alta concentração de Zn nessas formigas é benéfica para o crescimento e desenvolvimento das crianças (Chen, 1994); pupas de abelhas contêm 18% de proteínas e são ricas em vitaminas A e D. Análise bromatológica feita com pupas de bichos-da-seda (Bombyx mori L.) ingeridas como biscoitos na China e no Japão revelou que em 362g de matéria sólida há 90g de gordura e 207g de proteína (Carrera, 1992). O "ahuautle", uma mistura de ovos de hemípteros que constitui o "axayacatl" (caviar mexicano) apresenta conteúdos elevados de arginina, tirosina e cisteína, considerando-se o valor do último aminoácido como o mais rico dos alimentos no reino animal até agora estudado (Conconi e Rodríguez, 1977). De acordo com Cherry (1991), dez larvas grandes do cossídeo Xyleutes leucomochla Turner são suficientes para fornecer as necessidades diárias de um adulto. No Zaire, as lagartas da espécie Gonimbrasia belina Westwood (Saturniidae) são amplamente usadas como alimento por toda área de ocorrência do inseto (Glew et al., 1999). Os autores realizaram a análise bromatológica e encontraram os seguintes resultados: sais minerais, ácidos graxos, incluindo os dois que são essenciais (os ácidos linoléico e alfa-linoléico) e 18 aminoácidos comuns, incluindo aqueles que são essenciais ao ser humano: triptofano, cisteína e metionina. A análise realizada em larvas fritas do besouro Rhynchophorus palmarum L. forneceu os seguintes resultados: 54,3% de nitrogênio totais; 21,1% de lipídeos, 12,7% de umidade e 5,04% de cinzas. Trata-se, portanto, de um alimento bastante energético (Coimbra Júnior e Santos, 1993).
No que se refere ao conteúdo vitamínico, Ramos-Elorduy e Pino (2001) determinaram a concentração de vitaminas A, C, D e B (tiamina, riboflavina e niacina) em 35 espécies de insetos comestíveis no México e chegaram aos seguintes resultados: larvas e pupas do marimbondo Brachygastra mellifica (Say) contêm 0,11mg/100g de tiamina, 0,17mg/100g de riboflavina e 0,25mg/100g de niacina; as formas aladas de Atta cephalotes apresentam 0,61mg/100g de tiamina, 1,01mg/100g de riboflavina e 1,26mg/100g de niacina; o grilo da espécie Acheta domestica L. é rico em vitamina D, enquanto que ninfas da barata Periplaneta americana L. concentra vitaminas A, C e D nas seguintes quantidades: 29,06UI/100g, 23,84UI/100g e 387,18UI/100g, respectivamente.
A quantidade de insetos comestíveis que cada indivíduo deve ingerir para que seu estado nutricional seja considerado bom varia de acordo com a espécie selecionada. Com gafanhotos, por exemplo, balanceando uma dieta na qual os diversos ingredientes sinergizam-se, requeriria-se 25g/pessoa/dia, o que equivaleria a cerca de 47 espécimes do gênero Sphenarium (Ramos-Elorduy et al., 1998a). Gafanhotos africanos, cozidos em água salgada e destinados ao mercado do Marrocos, revelaram a presença de 46% de proteínas e 10% de gorduras (Carrera, 1992).
Nesse sentido, parece bastante ilógico o fato de que a ingestão de invertebrados (e.g., lagostas, caranguejos, camarões, ostras, lulas etc.) seja considerada como constituinte regular da alimentação, enquanto que o consumo de insetos, também invertebrados, seja visto com reservas pela maioria da população. A evitação do consumo de gafanhotos é especialmente interessante, pois embora esses animais tenham sido recomendados aos israelitas nas leis dietéticas do Levítico, os judeus modernos evitam comê-los (Farb e Armelagos, 1980). Já em 1854, Wallace registrava: "We ourselves consume quantities of crustacea, but would be loth to eat the locusts of the East or the fat butterflies of Australia" (Wallace, 1854).
Uma característica importante que deve ser levada em conta quando se fala em entomofagia diz respeito ao sabor que o inseto tem. Quando Marco Polo visitou a China, deparou-se com os "camarões-do-mato", termo localmente utilizado para designar os gafanhotos (Carrera, 1992). Ele notou que esses ortópteros não têm sabor próprio, mas imitam o sabor de qualquer tempero usado durante o preparo. Em uma região da Uganda, África, a mosca (Musca domestica L.), quando triturada, lembra o gosto de caviar. É também observado que todos os insetos aquáticos possuem o mesmo gosto do peixe (Conconi, 1984). A lagarta conhecida como mongo pelos índios Xukuru-Kariri do estado de Alagoas, nordeste do Brasil, lembra o gosto de tripas de porco assadas (Torres, 1984). Vale considerar, no entanto, que o paladar é uma variável cultural.
Os conhecimentos tradicionais sobre alimentos nativos e as técnicas para obtê-los são cruciais para a sobrevivência de muitos povos ao redor do mundo (Somnasong et al., 1998). De um modo geral, as culturas entomofágicas sabem quando, como e onde coletar as espécies de insetos que utilizam em sua alimentação, bem como têm um sem número de maneiras de prepará-las e de conservá-las para contar como alimento em épocas em que este escasseia (Conconi, 1984). O consumo de insetos comestíveis está relacionado com o ciclo de vida e com a localização geográfica das espécies e depende das condições abióticas (temperatura, umidade, tipo de solo, latitude, altitude, luminosidade e clima) e das condições bióticas (vegetação, hospedeiro, tipo de alimentação e fisiologia de sua reprodução), assim como o fato de uma espécie ser aquática ou terrestre. Todos estes fatores, de acordo com Ramos-Elorduy e Pino (1996), influenciam nas épocas de coleta e de consumo dos insetos. Os fatores socioeconômicos também são importantes. Por exemplo, os indíos Desâna do alto rio Negro (norte do Brasil) conciliam o aparecimento dos insetos com o ciclo constelar (Ribeiro e Kenhíri, 1987).
O valor de um dado animal como fonte de alimento para a espécie humana não apenas é determinado por seu aporte nutritivo, mas também se relaciona com a eficácia com que ele converte o alimento que consume em peso de seu próprio corpo. Em outras palavras, o peso mais alto que se ganha por cada grama de alimento consumido corresponde ao animal mais eficiente na conversão do alimento. Estudos apontam que os insetos comestíveis são altamente eficientes, competindo apenas com o frango. Um grilo pode ser menor que um boi, mas converte as plantas que consome em biomassa cinco vezes mais rápido (Krajick, 1994).
Além da importância nutricional, a importância econômica relacionada com a venda e/ou compra de insetos comestíveis e de produtos derivados também merece destaque, tanto no nível local e nacional quanto no nível internacional. Através da venda de insetos comestíveis em áreas semi-urbanas e urbanas, muitos indivíduos de comunidades rurais logram aumentar sua renda e, por conseguinte, podem adquirir artigos diversos (Chen et al., 1998). Mbata e Chudumayo (1999) demonstraram que o comércio de lagartas secas é economicamente rentável, relatando como o povo Bisa, da Zâmbia (África), processa e comercializa as lagartas das espécies Gonimbrasia zambesina Walker e Gynanisa maja Strand, ambas pertencentes à família Saturniidae. No sertão de Pernambuco, nordeste do Brasil, os principais clientes dos vendedores de tanajuras (fêmeas férteis de Atta spp.) são os proprietários de bares, que as oferecem como tira-gosto (Rose, 1993). No México, percevejos pentatomídeos e outros hemípteros são utilizados como condimento e embora produzam compostos odoríferos desagradáveis ou repugnantes, tais como os alfa-beta-aldeídos insaturados; esses insetos são vendidos vivos, torrados, moídos com pimenta ou sob a forma de pó (Ancona, 1933). Restaurantes finos de países desenvolvidos oferecem insetos comestíveis a preços bem elevados (Pemberton e Yamasaki, 1995).
A Criação de Insetos Comestíveis
As espécies atualmente usadas como alimento são coletadas principalmente das populações naturais e são criadas em sistemas de mini-fazendas. Isso é o que ocorre, por exemplo, com o bicho-da-seda, que não é mais capaz de sobreviver na natureza sem a interferência humana (DeFoliart, 1995). Segundo o autor, as pupas dessa espécie têm sido largamente utilizadas como alimento e/ou ração animal em praticamente todos os países asiáticos. No entanto, ao invés de depender da coleta de populações nativas, métodos artificiais de criação devem ser buscados para diminuir a pressão de coleta sobre indivíduos na natureza. Uma produção em massa garantiria um fornecimento contínuo e abundante de insetos para alimentação e/ou ração. Muitas espécies de insetos são criadas de modo mais eficiente que os mamíferos comumente consumidos. A criação do bicho-da-farinha, larva do besouro Tenebrio, é ideal para o trabalho caseiro, já que é limpo, não exige equipamentos especiais e ocupa muito pouco espaço.
Alguns autores têm evidenciado que o cultivo de insetos comestíveis é ecologicamente menos pernicioso que a criação de gado, que devasta florestas e pastos nativos. O incentivo à coleta de insetos daninhos às plantações (e.g., Locusta migratoria L.) é um dos meios pelos quais se consegue a diminuição do uso de pesticidas no campo (Abate et al., 2000). Em 1983, o governo tailandês publicou receitas culinárias contendo gafanhotos como uma medida para controlar esses insetos. A importância de valorizar os insetos comestíveis implica criação de medidas conservacionistas. De acordo com Wilson (1997), "a partir do momento em que a ciência descobre novas utilizações para a diversidade biológica, adquire conhecimento para elaborar políticas de conservação e desenvolvimento para os próximos séculos".
Ainda que a exploração de recursos entomofágicos seja considerada negativamente por muitos governos (Mbata e Chudamayo, 1999), exemplos bem sucedidos são registrados. Por exemplo, insetos criados com lixo orgânico doméstico podem fornecer uma fonte de proteína de baixo custo para ração animal. Um estudo experimental com a mosca registrou a capacidade e a eficiência que esse inseto tem para reciclar diferentes fontes orgânicas de lixo. O estágio pupal da mosca foi usado como ração para alevinos da truta-arco-íris (Ramos-Elorduy et al., 1988b). Hanping e Changzhen (1993) corroboram a importância da produção em massa de larvas de moscas (M. domestica vicina Macq.), uma vez que apresentam altas taxas de proteína e de gordura, podendo ser consideradas como uma boa fonte de proteína animal.
Os Limites da Entomofagia
Quando se discute sobre recursos alimentares, é preciso levar em consideração a sua adaptabilidade à espécie humana. No que se refere aos insetos, é importante reconhecer que muitas espécies seqüestram toxinas de plantas hospedeiras ou podem sintetizar suas próprias toxinas, tornando-se itens não-comestíveis e, assim, ficando descartadas para o consumo humano.
Blum (1994) examinou os perigos potenciais da ingestão de insetos tóxicos, fornecendo vários exemplos de insetos que devem ser evitados como alimento, tais como insetos cianogênicos (e.g., algumas borboletas das famílias Nymphalidae e Heliconidae e alguns besouros das famílias Chrysomelidae e Cicindellidae), vesicantes (e.g., mariposas do gênero Lonomia e o meloídeo Lytta vesicatoria L.), produtores de esteróides anabólicos (e.g., Ilybius fenestratus F., Dysticidae), de glicosídeos cardíacos (Chrysomelidae), de pirenos esteroidais (Lampyridae) e de corticosteróides (e.g., Dytiscus marginalis F, Dysticidae), de alcalóides necrotóxicos (e.g., formigas do subgênero Solenopsis) e de tolueno (e.g., cerambicídeos dos gêneros Syllitus e Stenocentrus). Segundo o autor, o conhecimento científico sobre os efeitos tóxicos de produtos naturais de insetos é ainda muito escasso. Os dados toxicológicos disponíveis tratam, quase sempre, dos compostos que são de importância à saúde. Por exemplo, a ingestão prolongada de esteróides anabólicos pode resultar em edema, icterícia e carcinoma hepático; azoospermia e impotência também podem ser conseqüência de uma dieta à base de besouros contendo esses hormônios. Para as mulheres, o perigo da masculinização é real como um resultado de uma dieta em disticídeos fortalecidos com esses andróginos (Gilman et al., 1980).
Blum (1994) classifica os insetos tóxicos em dois grupos: criptotóxicos e fanerotóxicos. Os insetos fanerotóxicos compreendem aqueles que são peçonhentos, ou seja, que apresentam um aparelho de peçonha que inclui uma glândula de veneno, um reservatório, um ducto e um aparelho para injetar a peçonha. Representantes desse grupo são os insetos das ordens Lepidoptera, Hymenoptera e Hemiptera, cujas secreções são distribuídas tanto por ferrões retráteis quanto por peças bucais penetrantes ou setas urticantes. Espécies fanerotóxicas podem não estar prontamente evidentes, como no caso das larvas de mariposas da família Saturniidae, que possuem grupos de espinhos cheios de peçonha que estão invisíveis por estarem cobertos por pêlos densos. As toxinas produzidas pelas espécies fanerotóxicas apenas ficam ativas através da injeção, tornando-se inativas no trato gastrintestinal. Apesar disso, um mínimo de cuidado é recomendado. No que se refere à ingestão descuidada de lagartas urticantes, verifica-se que a cavidade oral é provavelmente bastante suscetível aos efeitos perniciosos das toxinas. Podem ocorrer, também, perfurações na parede do esôfago e demais regiões da cavidade oral devido aos espinhos, o que poderia levar a uma sobrecarga tóxica real.
Os insetos criptotóxicos são aqueles que produzem secreções não-exócrinas tóxicas, cuja toxicidade só se manifesta quando são ingeridos. As espécies criptotóxicas requerem maior cuidado em sua seleção como itens a serem consumidos. Besouros estafilinídeos do gênero Paederus, por exemplo, produzem substâncias vesicantes que só são detectados quando eles são esmagados. Um desses vesicantes é a pederina, um composto não-protéico que é um poderoso inibidor da síntese protéica e da mitose. Na Nigéria ocidental, as lagartas de Anaphe venata Butler (Lepidoptera, Notodontidae) são amplamente consumidas como um suplemento protéico sazonal por pessoas de baixa renda. Entretanto, estudos revelaram que as lagartas estão envolvidas na patogenia de uma síndrome atóxica sazonal devido aos componentes químicos que estão presentes em seus corpos (Onayade, 1995).
O entomófago deve ser capaz, então, de descriminar as espécies tóxicas antes que se tornem desastres gastrintestinais. Felizmente, uma grande variedade de insetos anuncia, por meio de vesicantes externos ou cores de destaque em seu corpo (como bandas de preto, amarelo, vermelho e branco), os efeitos farmacológicos adversos de seus produtos naturais. Tais espécies devem ser prontamente rejeitadas como alimento. No que se refere aos compostos odoríferos dos percevejos, Blum (1994) afirma que tais compostos usualmente resultam na rejeição de seus produtores no nível oral, não parecendo que a toxicidade entérica seja importante.
Recomendações Finais
Escolhidos os insetos adequados ao consumo humano, as populações ocidentais precisam rever seus hábitos alimentares e considerar, à luz do conhecimento atual, o potencial alimentar que os insetos têm para oferecer, dado a grande quantidade de proteínas, gorduras, vitaminas e sais minerais neles contidos. Se aproveitados sistemática e sustentavelmente, os insetos comestíveis podem ajudar na redução do problema de deficiência protéica que existe em grande parte do mundo (Fasoranti e Ajiboye, 1993). Para que este recurso protéico seja realmente útil em grande escala, necessita-se que seja abundante, barato e agradável ao paladar.
A entomofagia pode ser promovida através da educação, enfatizando-se os benefícios nutricionais que os insetos comestíveis podem fornecer aos consumidores. É preciso mudar a idéia de que insetos não podem ser incluídos na alimentação do dia-a-dia. Passemos, então, a saborear torta de grilos, baratas-dágua fritas, lagartas ao molho de ameixa e outras guloseimas mais!
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