Interciencia
versión impresa ISSN 0378-1844
INCI v.30 n.12 Caracas dic. 2005
PRENÚNCIO DE CHUVAS PELAS AVES NA PERCEPÇÃO DE MORADORES DE COMUNIDADES RURAIS NO MUNICÍPIO DE SOLEDADE-PB, BRASIL
Helder Farias Pereira de Araujo, Reinaldo Farias Paiva de Lucena e José da Silva Mourão
Helder Farias Pereira de Araujo. Mestre em Ciências Biológicas, Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Brasil. Endereço: Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas, Centro de Ciências Exatas e da Natureza, Cidade Universitária, 58059-900, João Pessoa, Paraíba, Brasil. e-mail: helder@dse.ufpb.br
Reinaldo Farias Paiva de Lucena. Mestre em Botânica, Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Brasil. Programa de Pós-Graduação em Botânica, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil.
José da Silva Mourão. Doutor em Ecologia e Recursos Naturais, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Brasil.Professor da Universidade Estadual da Paraíba. Brasil. e-mail: tramataia@uol.com.br
Resumen
En un contexto informacional (semiótico) este trabajo etnográfico registró informaciones sobre las indicaciones de las aves para la previsión de lluvia en tres comunidades rurales en el distrito municipal de Soledade, Paraíba. Nordeste de Brasil. Los datos biológicos, ecológicos y etnoornitológicos fueron reunidos en el campo a través de entrevistas libres y abiertas, formularios semi-estructurados, observación directa y giras guiadas. Para verificar la corrección de la información se usó un control a través de la información repetida en la situación síncrona. Los informantes mencionaron 30 especies de aves indicadores de lluvia, siendo las más frecuentes Crotophaga ani, Herpetotheres cachinnans, Cariama cristata y Nystalus maculatus. Las vocalizaciones son las señales-clave más evidentes con valor informativo que los residentes reportan como señal de lluvia. Otras señales indicativas fueron la postura de huevos, instalación del nido, aparición en la región y reproducción. Hay una correlación significante y positiva (r²= 0,259; p<0,01) entre la pluviosidad media y la frecuencia de observaciones mensuales de las aves indicadoras de lluvia. Se verificó que el conocimiento etnoornitologico está bien distribuido en el área, además de ser transmitido a través de las generaciones, inter-socialmente (conocimiento circular) y adquirido con la experiencia diaria (conocimiento horizontal).
Summary
In an informational (semiotic) context, the present ethnographic work recorded information on avian indications for predicting rain at three rural communities in the municipality of Soledade, State of Paraíba, Northeast Brazil. The biological, ecological, and ethnoornithological data were collected in the field by applying free- and open-interviews, semi-structured questionnaires, direct observation, and guided tours in the caatinga. The reliability of the information obtained was explored by means of a control using synchronous repeated information. The informants reported 30 bird species as biodindicators of rain, being most commonly mentioned the smooth-billed ani (Crotophaga ani), laughing cachinnans (Herpetotheres cachinnans), red-legged (Cariana cristata), and spot-backed puffbird (Nystalus maculatus). Vocalizations were recognized by local people as key signs with the highest informational value for predicting rain. Other signs used as indicators were laying of eggs, nesting, their emergence in the region, and reproduction. The mean rainfall correlated significantly and positively on the frequency of monthly observations of birds that indicate rain (r2= 0.259, p<0.01). It is concluded that this ethnoornithological knowledge is widely distributed in the area. It is passed from generation to generation, being transmitted intersocially (circular knowledge), and through daily acquaintance (horizontal knowledge).
Resumo
Num contexto informacional (semiótico), este trabalho etnográfico registrou informações sobre as indicações aviárias para a previsão de chuva em três comunidades rurais no município de Soledade, Paraíba, Nordeste do Brasil. Os dados biológicos, ecológicos e etnoornitológicos foram coletados em campo através de entrevistas livres e abertas, formulários semi-estruturados, observação direta e turnê guiada na caatinga. Para verificar a fidedignidade das informações utilizamos um controle através de informações repetidas em situação sincrônica. Foram mencionadas pelos informantes 30 espécies de aves bioindicadoras de chuva, as mais citadas foram anum-preto (Crotophaga ani), acauã (Herpetotheres cachinnans), sariema (Cariama cristata) e fura-barreiro (Nystalus maculatus). Os sinais-chave com valor informacional mais evidentes, que os moradores observam nas aves para o prenúncio de chuva, são as vocalizações. Registraram-se outros sinais indicativos como postura dos ovos, nidificação, surgimento na região e reprodução. Há uma correlação significativa e positiva (r²= 0,259; p<0,01) entre a pluviosidade média e a freqüência de observações mensais das aves indicadoras de chuva. Foi constatado que esse conhecimento etnoornitológico é bem distribuído na área, além de ser transmitido através das gerações, inter-socialmente (conhecimento circular) e adquirido com a experiência cotidiana (conhecimento horizontal).
PALAVRAS CHAVES/ Aves / Caatinga / Etnoornitologia / Populações Locais / Semiótico /
Recibido: 04/05/2005. Modificado: 13/10/2005. Aceito: 17/10/2005.
Introducçao
A Caatinga está localizada principalmente na região nordeste do Brasil, ocorrendo também no norte do Estado de Minas Gerais. Esta região é caracterizada pelo clima semi-árido, com chuvas irregulares. Apresenta duas estações não muito bem definidas: uma seca e outra chuvosa. A irregularidade climática é um dos fatores que mais interferem na vida dos "sertanejos/vaqueiros", populações tradicionais que se encontram distribuídas desde o Agreste às regiões semi-áridas da caatinga, desenvolvendo, principalmente, atividades de subsistência (Diegues e Arruda, 2001).
A cidade de Soledade está inserida na microrregião do Curimataú paraibano, nos domínios da Caatinga. Apresenta uma baixa precipitação pluviométrica anual, em torno de 300mm³ e uma curta estação chuvosa com até 11 meses de seca (Sebrae, 1998).
Nesse contexto, os moradores de comunidades rurais de Soledade adaptaram-se e aperfeiçoaram-se na observação de sinais como prováveis indicadores de estações chuvosas, assim se preparando antecipadamente para o início do cultivo de suas culturas alimentícias, como também na preparação e limpeza de tanques de pedra e outros compartimentos com a finalidade de captação de água das chuvas (Bonifácio et al., 2002; Lucena et al., 2002).
O presente trabalho se propôs a realizar uma análise etnoornitológica com os moradores de comunidades rurais de Soledade, no sentido de obter informações sobre o prenúncio de chuva a partir de sinais avifaunísticos. A pertinência deste estudo salienta-se pelas afirmações de que existem vozes aviárias que dão nota peculiar a uma determinada paisagem e, que no meio rural brasileiro, a voz de muitas aves é considerada pelo povo como prenúncio de chuva (Marques, 1999; Sick, 2001).
Área de Estudo
O município de Soledade está inserido na mesorregião do Agreste do Estado da Paraíba, Nordeste do Brasil (Figura 1). Possui área territorial de 634,9km2, precisamente localizada à 7º03'26''S e 36º21'46''O, com altitude de 521m acima do nível do mar. Está próxima às rodovias PB-176 e PB-177, sendo cortada pela rodovia federal BR-230, que dá acesso direto, rumo a oeste, à capital do Estado, João Pessoa (186,2km; Sebrae, 1998).
As áreas escolhidas para o presente estudo foram às comunidades rurais de Barroca, Bom Sucesso e Cachoeira, distando cerca de 18km da sede do município. Algumas das características dessas comunidades foram adquiridas a partir das observações e informações obtidas durante as visitas ao local e entrevistas com os moradores.
A principal atividade registrada como fonte de renda na região é a agricultura de subsistência, principalmente com o cultivo de milho e feijão e, minoritariamente, algodão. Esse cultivo é preferencialmente executado pelos homens, ficando as mulheres responsáveis pelo trabalho doméstico.
A comunidade de Barroca apresenta-se, essencialmente, como propriedades rurais, conseqüentemente com suas residências distantes umas das outras, comparando com as outras duas comunidades. Sua extensão é relativamente grande para o local, a ponto de os moradores caracterizá-la em duas partes, Barroca de cima e Barroca de baixo.
A comunidade de Cachoeira está localizada nas terras pertencentes à Dona Genuína (moradora entrevistada), que doou os espaços onde foram construídas as demais residências. Essa comunidade apresenta-se como um aglomerado de casas, além de possuir uma escola e um campo de futebol (Lucena, 2002).
Em Bom Sucesso existe uma divisão física bem característica, verificando uma área com propriedades rurais afastadas e um aglomerado de casas evidenciando um aspecto de vila. Apresenta uma escola, posto telefônico, bar, campo de futebol e cemitério. Este é usado pelos moradores das comunidades circunvizinhas, visto que é o único cemitério da região.
Metodologia
As comunidades alvo desta pesquisa foram escolhidas devido às semelhança de hábitos e facilidade de acesso, como também pelo desenvolvimento de práticas agrícolas tradicionais (Lima et. al., 2000). A primeira fase da pesquisa ocorreu em setembro 2001, com a realização de "surveys" para definição e escolha dos informantes. Os dados etnoornitológicos necessários para este estudo foram coletados de maio a setembro 2002. Foram utilizadas entrevistas livres e abertas, formulários semi-estruturados, observações direta e turnê guiada (Bernard, 1988; Montenegro, 2001; Viertler, 2002; Albuquerque e Lucena, 2004).
Foram entrevistados 62 informantes (40 homens e 22 mulheres) nas três comunidades, totalizando 100% das residências habitadas, variando as idades desde crianças com 11 anos até idosos com 85 anos. Nas entrevistas preservou-se o diálogo informal a partir do formulário semi-estruturado, assim, incorporando de maneira discreta as perguntas específicas referentes às aves indicadoras de chuva. Para testar a fidedignidade das informações, aplico-se o formulário a todos os entrevistados das três comunidades, com o intuito de confrontar e constatar a validade dos resultados, o que remete à técnica da informação repetida em situação sincrônica. Nos correntes diálogos registraram-se algumas frases específicas que foram caracterizadas como "memes", as quais formaram partes de informações contextualizadas. Memes é um termo cunhado por Dawkins em 1976 com o sentido de representar a unidade básica da transmissão cultural ou da imitação; Dennet em 1998 referenciou o termo como menores elementos que se replicam com confiabilidade e fecundidade numa transmissão cultural (Marques, 1999).
Nas turnês guiadas realizadas com alguns moradores (5 informantes-chave) foi possível observar, de maneira visual ou sonora, uma variedade de aves, bioindicadoras ou não. Para as espécies que não foram registradas, mas ainda assim, citadas como bioindicadoras, procurou-se obter suas características com os entrevistados, que possibilitaram enquadrá-las no táxon Família. Os nomes vernaculares são os citados pelos moradores e a ordenação taxonômica está baseada no Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos (CBRO, 2005).
Análise dos Dados
Para verificar a ocorrência de uma corelação entre a freqüência das observações dos sinais aviários para o prenúncio das chuvas, mensurada pela freqüência de observadores ao mês, com a pluviosidade média da região, utilizou-se a Correlação de Pearson, através do software Statistica 4.0. Os dados foram transformados proporcionalmente utilizando a raiz quadrada, com a finalidade de atingir suas normalidades e homocedasticidades.
Com o intuito de comparar o conhecimento sobre a ocorrência de aves indicadoras entre as comunidades, utilizou-se a ANOVA não-paramétrica, teste de Kruskal-Wallis, aplicada às freqüências de citação das espécies em cada comunidade.
Os dados pluviométricos da região foram fornecidos pelo Laboratório de Meteorologia, Recursos Hídricos de Sensoriamento Remoto da Paraíba (LMRHS-UFCG).
Resultados e Discussão
As aves que prenunciam chuva
"Tem um bocado que avisa, quase tudo, mas o que nós temos fé é negócio de fura-barreiro, o anum, a rolinha quando estão cantando" (Bento, informante da comunidade Cachoeira).
Dentre vários sinais observados pelos camponeses nordestinos como indicadores de estações chuvosas, os aves oferecem uma grande contribuição a partir de seus comportamentos e suas vocalizações (Magalhães, 1952; Cascudo, 1970; Marques, 1999). Em Soledade não é diferente, das 139 espécies de aves citadas nas entrevistas, foram verificadas 30 espécies que pressagiam o inverno (Tabela I).
Algumas destas são reconhecidas como bioindicadores de chuva em outras regiões brasileiras, como registra Magalhães (1952), que cita aves indicadoras em suas entrevistas realizadas em estados nordestinos, tais como anum-preto (C. ani), rolinhas (Columbidae), galo-de-campina (P. dominicana), acauã (H. cachinnans) e tetéu (V. chilensis). Marques (1999) também evidenciou várias aves utilizadas no Nordeste brasileiro como indicadoras de chuva; dentre elas o autor cita seriema (C. cristata), acauã (H. cachinnans), corduniz (N. maculosa), anum-preto (C. ani), mãe-da-lua (N. griseus), sabiá (T. rufiventris), galo-de-campina (P. dominicana), arribaçã (Z. auriculata), tetéu (V. chilensis) e fura-barreiro (N. maculatus). Esta última espécie também foi registrada por Medeiros Neto et al. (1997) na mesma região de Soledade; além disso, este autor constatou que a predação desta espécie pelos caçadores da região é mínima.
"O anum-preto é o profeta do agricultor... ah o fura-barreiro é outro profeta" (Zeca, informante da comunidade de Bom Sucesso). Evitando a ambigüidade e o misticismo da palavra profeta ou de termos como animais proféticos, pode-se utilizar a tipologia funcional, de um correspondente "ético" a uma categoria "êmica", para as aves que experimentam transmutação zoossemiótica no meio rural brasileiro (Marques, 1999, 2002). Assim pode-se enquadrar as aves fornecidas pelos informantes das comunidades estudadas como ornitoáugures meteóricos (grego ornithos: ave + augure: sacerdote romano que tirava presságios de canto e do vôo das aves; adivinho, vaticinador, agoureiro) (Bueno, 1984; Marques, 1998, 1999), augurar: predizer, augúrio: presságio (Ferreira, 1993) / meteórico: dependente do estado atmosférico (Bueno, 1984)). Marques (1999) conceitua ornitoáugures meteóricos como "aves cujas vocalizações atribui-se o poder de prenunciar eventos relacionados com o tempo e clima". Neste trabalho, o termo ornitoáugures meteóricos foi utilizado sem restringi-lo apenas às vocalizações, mas atribuindo-lhe também qualquer comportamento que transmitia a mensagem proposta, já que a sua origem morfológica não especifica somente as vozes aviárias.
Como pode ser visto na Tabela I, algumas aves receberam mais destaque na sua função bioindicadora. Anum-preto (C. ani), acauã (H. cachinnans), siriema (C. cristata) e fura-barreiro (N. maculatus) foram as espécies mais citadas.
Dmítriv (1984), citado por Marques (1999), afirma que "15 a 20% dos prognósticos fornecidos pelos serviços meteorológicos que utilizam métodos convencionais na China resultam errôneos, enquanto que os prognósticos fornecidos pelo comportamento de um peixe, cujo nome vernáculo é nemaquilo, há muito tempo usado pelos camponeses chineses, falhariam em apenas 3% dos casos".
Nas comunidades de Barroca, Cachoeira e Bom Sucesso existe uma observação diversificada quanto o uso dos recursos naturais para fins meteorológicos. Lucena (2002) registrou 19 espécies de plantas que prenunciam chuva. Araujo et al. (2002) também registraram algumas dessas plantas e Lucena et al. (2002) evidenciaram mamíferos, répteis, anfíbios e insetos com função bioindicadora de chuva.
Como as aves avisam quando vai chover?
"Quando está perto do inverno eles cantam, é cantando..." (Zé de Beiga, informante da comunidade Cachoeira).
Os sinais-chave mais evidentes com valor informacional que os moradores observam nas aves para o prenúncio de chuva são as vocalizações. Segundo Marques (1999), elas abrangem várias categorias experimentais de percepção no cotidiano do "sertanejo/vaqueiro"; algumas das categorias de vocalizações obtidas neste trabalho podem ser evidenciadas no trabalho de Marques (1999) e Zenaide (1989).
Embora em menor número, foi registrado outros sinais-chave além de vocalizações, com o mesmo valor meteórico-específico informacional. O fura-barreiro (N. maculatus) indica chuva através do seu "canto grosso". Além disso, conforme relata Bento (informante da comunidade Cachoeira): "quando está perto de chover eles furam a barreira bem alto". Segundo os informantes, a altura de construção do refúgio do fura-barreiro também prenuncia a seca: "se ela furar baixo aí o ano é seco; se ela furar mais alto, é por causa que vai passar a chuva". Ainda com relação à mesma ave, Zeca, da comunidade Bom Sucesso, faz o seguinte comentário: "o fura-barreiro é outro profeta do agricultor, ele cava a barreira do lado contrário da chuva, se cavar do lado que vem a chuva, não tem inverno". (Inverno no sentido de tempo chuvoso). Magalhães (1952), Amorozo (1996) e Marques (1999) também registram aves com comportamentos, além de vocalizações, utilizados pelas populações locais como sinais indicadores de chuva.
Na Tabela II estão evidenciados todos os ornitoáugures meteóricos citados nas entrevistas e os respectivos sinais indicativos.
Sabedoria dos passarinhos...
Verificam-se períodos em que a freqüência das observações dos sinais-chave com valor informacional para o início das chuvas, atribuídos pelos informantes, variam. Em dezembro, por exemplo, cerca de oito moradores começam a observar os sinais aviários e nos primeiros meses do ano seguinte esse número aumenta. Na Figura 2 tem-se a correlação entre essa freqüência de observações dos sinais aviários e a pluviosidade média da região. A correlação foi positiva e altamente significativa com r²= 0,2598 e p<0,01.
É nesse período que, de acordo com os entrevistados, ocorre o cruzamento e a postura das aves citadas como bioindicadoras e da maioria das aves da região: "é tempo deles se cruzarem e eles põem" (Dona Nega, informante da comunidade Bom Sucesso); "na época do inverno tem postura" (Arnaldo, comunidade Bom Sucesso); "andam em casais e depois aparecem filhotes, ai você vê muitos" (Sivuca, comunidade Barroca);" se acasalam nesse período" (Zé Rodrigues, comunidade Barroca); "tem o cruzamento do período de chuva,... são sabidos, porque se não matam os filhos de fome" (Antônio de Izidio, informante da comunidade Barroca).
A literatura registra que os cantos das aves, vocalizações mais longas e mais complexas, são diferentes dos seus chamados, e tais cantos, na maioria das espécies, são executados pelos indivíduos maduros sexualmente, e só durante a estação reprodutiva (Sick, 2001; Pough et al., 2003).
Sabe-se que os sistemas de acasalamento dos vertebrados refletem a distribuição de alimentos e os locais de reprodução (Pough et al, 2003). Com isso pode-se deduzir que a maioria dos informantes tem esse conhecimento adquirido ou confirmado por meio de observações. Como cita, respectivamente, Zé de Bega e Bento, informantes da comunidade Cachoeira: "É quando tá pertim assim de chover, que eles canta assim, é pá mode eles ter os cruzamento deles". "Eles casa no inverno, e é o mesmo canto da indicação de chuva".
Sick (2001) comenta que os fatores climáticos em geral, sobretudo a umidade atmosférica, exercem influência no sentido de incentivar a atividade reprodutora das aves, influenciando conseqüentemente na atividade sonora.
O número de espécies de aves evidenciadas como ornitoáugures meteóricos, pelos informantes, foi alto. Como existe também uma diversidade de sinais observados, sugere-se uma investigação mais acurada quanto à relação da época de exibição desses sinais com o período chuvoso, sobretudo para aquelas espécies que obtiveram maior freqüência de citação.
O Conhecimento e as Comunidades
As características das aves (tamanho, cor, alimentação, composição do ninho, número de ovos por ninho, tamanho e cor dos ovos) foram também relatadas pelos entrevistados, o que, juntamente com as observações de algumas espécies nas turnês guiadas, possibilitaram as identificações científicas.
A freqüência das informações sobre a existência de aves bioindicadoras de chuva encontra-se registrada na Figura 3, mostrando que 80,65% dos entrevistados apresentaram um certo conhecimento sobre esses ornitoáugures meteóricos.
Não houve variação significativa quanto à freqüência de espécies citadas como ornitoáugures meteóricos entre as comunidades (Figura 4). Tal fato revela que esse conhecimento é bem distribuído nas comunidades estudadas.
O conhecimento de ornitoáugures meteóricos demonstrado pelos moradores das comunidades de Soledade segue os caminhos percorridos na herança cultural (Nordi et al., 2001). Existe conhecimento acumulado pelas experiências transmitidas pelos antepassados, o que foi a maioria: "O pai que me ensinou, no tempo dele já tinha essa idéia" (Bento, comunidade Cachoeira); o conhecimento acumulado durante o contato social dentro do grupo: "O povo diz se..." (Zilda, comunidade Cachoeira); e a própria observação acurada que cada um faz das variações dos ciclos naturais: "... e constatei com experiência própria" (Armando e Antônio de Izidio, informantes da comunidade Barroca).
CONCLUSÃO
Existe uma grande riqueza avefaunística na região de Soledade, sendo evidenciadas pelos informantes 139 espécies de aves. Dessas, 30 são observadas pelos moradores das comunidades de Barroca, Cachoeira e Bom Sucesso como bioindicadores de chuva. Esses moradores demonstram um grande conhecimento sobre os sinais-chave, vocalizações e outros comportamentos, relacionados ao presságio de chuva. Este conhecimento é transmitido de geração em geração e socialmente entre esses moradores.
Pode-se concluir, sabendo que comumente as aves têm mais de um tipo de canto, que os informantes observam o comportamento reprodutivo na formação dos casais de aves e atribuem, a tal, uma característica bioindicadora de "tempo bom".
Os conhecimentos etnoornitológicos demonstrados nas três comunidades assemelham-se bastante, a ponto de poder-se afirmar que essa cognição é comum e contínua na região.
AGRADECIMENTOS
Aos moradores das comunidades de Barrocas, Bom Sucesso e Cachoeira por terem se prontificado a participarem desta pesquisa. Ao Laboratório de Meteorologia, recursos Hídricos de Sensoriamento Remoto da Paraíba, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) por os dados pluviométricos do município de Soledade. A Edlourdes Pontes de Medeiros por participar da coleta de dados no campo. Em memória: Genival Delfino de Almeida e Inácio Ramos (comunidade Barrocas).
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