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EPISTEME

versión impresa ISSN 0798-4324

EPISTEME v.29 n.2 caracas dic. 2009

 

Discutindo aspectos da justiça internacional: considerações a partir do pensamento de John Rawls e Amartya Sen

neuro josé zambam

UNIANHANGUERA. neurojose@hotmail.com

Resumo:

O atual estágio de desenvolvimento da sociedade tem na democracia uma das mais relevantes características em condições de oferecer respostas às mais variadas demandas provenientes do seu interior. As diferentes sociedades, assim como a natureza, têm sua constituição marcada pelas diferenças tanto em seu interior como na relação com as demais sociedades. A busca pela construção da justiça nas sociedades democráticas ocorre supondo essa característica fundamental. Disso, vem a necessidade de buscar relações não-lineares, contudo justas, porque são condenadas, nas diversas manifestações e nos diferentes níveis, nacional e internacional, as desigualdades gritantes. As proposições, a partir do pensamento de John Rawls e Amartya Sen, incluindo a firme adesão à democracia, os princípios da justiça, a tolerância e a relevante retórica alcançada pelos direitos humanos são indispensáveis para o ordenamento mais justo das relações entre os povos.

Palavras-chave: Democracia, Desigualdades, Liberdade, Tolerância.

Discutindo aspectos da justiça internacional: considerações a partir do pensamento de John Rawls e Amartya Sen

Abstract:

The current development stage of society has, in the democracy, one of the most relevant characteristics in condition to offer answers to the most varied demands stemming from its inner parts. Different societies, as well as nature, have its condition characterized by differences, internally as well as in relation to other societies. The search to reach justice in the democratic societies occurs by supposing this is a fundamental characteristic. From that comes the need to search not linear relations, however fair, as they are condemned, in different manifestations, and in different levels, nationally and internationally, to the appalling inequalities. The propositions according to John Rawls’s and Amartya Sen’s thought, including the strong adherence to democracy, the principles of justice, the tolerance and rhetoric relevance reached by the human rights, are essential for a fairer regulation of the relationship among peoples.

Keywords: Democracy, Principle of Justice, Tolerance.

Recibido 21-11-08 Aceptado 27-11-08

1.    Introdução

A preocupação com uma estruturação justa das relações sociais caracteriza a existência da humanidade. As diferentes sociedades respondem a esse ponto através de sua organização interna e de suas relações externas, de tal maneira que as diferentes concepções políticas e as suas respectivas instituições representam a resposta aos dilemas que envolvem essa temática. Entre os variados espaços que demandam estruturas mais justas, encontra-se o ordenamento internacional que, assim como o interior das sociedades, é caracterizado por uma constituição diversificada. Na estruturação interna de cada país, encontram-se particularidades que o caracterizam, enriquecem sua cultura e estabelecem parâmetros para determinar o relacionamento com os demais, bem como apresentam limites para que os outros com ele se relacionem. Essa característica está na origem das relações entre os povos, identificando os limites, as condições, e as possibilidades para a concretização das diferentes proposições provenientes dos mais variados interesses encontrados em seu interior.

Nesse sentido, a diversidade na estruturação das sociedades e nas suas relações precisam ser consideradas como essenciais quando da proposição de um ordenamento justo entre os povos. Ordenar as sociedades de forma mais justa é essencial para que a vida dos cidadãos seja possível no espaço da sua existência e possibilite as necessárias condições às futuras gerações. Nessa relação de co-responsabilidade está a resposta à pergunta: Por que as relações devem ser mais justas?

Na elaboração da tradição filosófica, encontram-se referências que solidificam e oferecem a necessária fundamentação às proposições demandadas pelo atual estágio de desenvolvimento das sociedades. Nesse sentido, destaca-se a contribuição amplamente reconhecida de Platão e de Aristóteles.

O final do século passado foi marcado pelo surgimento da Teoria da Justiça de John Rawls, a ponto de torná-la uma referência indispensável sobre temas que tem como preocupação a justiça. Também o pensamento de Amartya Sen oferece uma abordagem a ser considerada, quer pela sua relevância quer pela sua contribuição, a partir das ciências econômicas e da diversidade cultural.

Para abordar parte dessa temática, o texto a seguir, quanto à da caracterização das diferenças como constituintes das sociedades, destaca alguns aspectos do pensamento de John Rawls e Amartya Sen, apto a orientar uma estruturação de relações mais justas entre os povos, marcadas, atualmente, pelos avanços ocorridos no processo de globalização. As condições oferecidas pelo ordenamento das sociedades democráticas e suas instituições sociais, assim como os princípios da justiça, os direitos humanos e a necessidade de tolerância entre diferentes, são parte integrante da retórica dos vínculos entre povos distintos. A pluralidade arquiteta a estética do ordenamento social; de outra parte, as gritantes desigualdades encontradas no interior das relações sociais, políticas, econômicas e culturais comprometem a harmonia das diferenças.

2.    O contexto das desigualdades

O processo de estruturação das sociedades dá-se de forma marcadamente tensa, porque, em seu interior, estão indivíduos motivados por interesses e concepções de mundo diferentes. A partir disso, constituem-se diferenciadas formas de organização entre as pessoas e delas, com a natureza, com as instituições e com os demais atores sociais. Assim, pode-se afirmar que a estruturação de uma sociedade justa, na sua origem, defronta-se com as desigualdades.

A justiça, embora pareça paradoxal, busca suplantar as desigualdades. Surgem daí as diferentes questões em torno da utopia de uma sociedade justa. Tais questões estão sintetizadas na preocupação que John Rawls formulou na introdução do livro O liberalismo político, que representa o contexto e as grandes preocupações da sociedade contemporânea: “[...] como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis.” 1

As diferenças encontradas no interior das sociedades encontram-se, também, nas diversificadas concepções de justiça, em torno do que não existe unanimidade. Pode-se perguntar então: Por que se preocupar com o tema da igualdade, se, na sua origem, a sociedade é desigual? A abordagem deste tema justifica-se pela ocorrência, de desigualdades gritantes em espaços cruciais das relações humanas. Os adjetivos gritantes caracterizam essas desigualdades como injustificadas e prejudiciais à organização de uma sociedade justa. A perspectiva filosófica possibilita uma investigação crítica que objetiva questionar e desvendar as causas e as consequências de uma realidade marcadamente injusta. Assim como a escravidão ou o tráfico de órgãos humanos (entre outros exemplos)não encontram legitimidade moral, assim também as gritantes desigualdades verificadas entre os membros de uma sociedade, dessas entre si e com a natureza, são moralmente injustas.

A probabilidade de uma igualdade linear, isto é, o tratamento dos membros da sociedade igualitariamente em todos os aspectos da organização social, especialmente em relação ao acesso aos bens, encontra os principais limites, a partir de dois panoramas: primeiro, considerando as fracassadas experiências levadas a efeito pelas estruturas do chamado socialismo real. Segundo, porque as diferenças estão na origem da natureza e da estruturação das sociedades e, por isso, características indispensáveis da sua organização. Pode-se, dessa forma, compreender como as desigualdades são integrantes da estruturação da sociedade, assim como da natureza e da individualidade biológica de cada ser vivo.

O necessário distanciamento da perspectiva igualitarista é indispensável. Nesse sentido, as diferenças são admitidas e caracterizadas como parte integrante da identidade humana, social e da natureza. Justas são as desigualdades que permitem um ordenamento equilibrado e integrado; selecionando, integrando e fortalecendo as diferenças, e injustas são as relações que conduzem ao desequilíbrio2. Como exemplo de relações e de sociedades desequilibradas e injustas – por isso, sem justificativa de qualquer natureza moral, podem-se citar a persistência de analfabetismo endêmico em muitos países subdesenvolvidos da África Subsaariana, as condições políticas recentemente divulgadas no Haiti e a diferença na distribuição de renda no Brasil. Da mesma forma, há gritantes desigualdades na relação entre nações e no interior de nações ricas, onde pessoas vivem em condições subumanas, ao lado de padrões de vida marcados pela opulência.

Podem-se caracterizar, também, as acentuadas diferenças nas formas de discriminação de culturas, de raças e de opções de vida ou modelos de comportamento oriundos de herança cultural. Da mesma forma, não se pode desconsiderar a ainda grave discriminação da mulher, presente no interior de muitas sociedades, especificamente, no acesso à plena participação política – direito de votar e ser votada, marco fundamental da emancipação e do exercício da cidadania.

A abordagem das desigualdades precisa considerar a variada teia de relações que caracteriza e dinamiza a sociedade, evitando-se, assim, constantes reducionismos e conclusões sem a devida fundamentação. Essa perspectiva aponta, imediatamente, para a convicção de que um tema com tais dimensões não pode ter sua abordagem restrita ao acesso aos bens e à renda3. Da mesma forma que os bens econômicos não devem ser relegados a um plano inferior. Quando essa temática é tratada, as desigualdades adquirem um lugar especial determinante para a consideração dos temas da justiça, na tentativa de buscar respostas às diferentes questões, provenientes dos relacionamentos que se estabelecem no interior das sociedades. Sendo a justiça social um dos principais focos da abordagem das diferentes teorias da justiça, na qual se percebe uma tendência marcadamente igualitária, a diversidade, que constitui o tecido das relações sociais, torna-se uma das dimensões indispensáveis para a reflexão que caracteriza os temas da justiça.

No primeiro livro da República de Platão, apresenta-se a tentativa de equalizar o acesso aos bens: “que é justo restituir a cada um o que se lhe deve. Parece-me que diz bem, ao fazer essa afirmação”4. A reflexão ética tem sua constituição nas tensões advindas do debate que ocorre entre as diversas relações que as pessoas estabelecem. Pode-se concluir que as diferenças (ou as desigualdades) não podem ser desconsideradas quando são tratados temas que envolvem a justiça. Platão concebe a justiça como a virtude suprema que ilumina o agir do cidadão para se moldar, assim como os dirigentes e as instituições, ao ideal de justiça.

A justiça é a alma da polis e governa a vida humana em todas as suas dimensões. A sociedade será mais justa, quanto mais os cidadãos se adaptarem ao ideal de justiça. A arquitetura universal eleva o real, e nessa tensão entre o ideal e o real, processam-se a identidade do indivíduo e a norma de ação para a sociedade. O indivíduo é elevado à existência universal, que é incorporada à práxis concreta da vida humana e social. A organização política da polis merece consideração justa quando as diferentes funções são ordenadas de forma harmônica.5

Da tradição antiga, o tema da justiça herdou da concepção de Aristóteles a relação entre justiça e felicidade. A felicidade é o objetivo das ações do ser humano, atingida quando é completada a interação entre o pensar e a realidade, isto é, quando o real está conforme a virtude maior. A justiça é a virtude por excelência. Nela, estão presentes as demais virtudes e, na totalidade das virtudes, está ela também presente.6 A justiça é perpassada pelo critério da mediania (a dificuldade está em saber entre quais extremos uma ação justa é mediana). Sua obtenção se dá pela educação ética, pelo hábito do comportamento ético, pela construção da conduta prática, a partir da aplicação do juízo da reta razão à esfera das ações humanas. A perfeição de caráter é adquirida com a reiterada prática virtuosa. A busca da virtude deve ser um ideal permanente na vida do ser humano, e como tal, ela nunca é definitiva, tampouco, herdada da natureza, mas sim, um processo permanente.

O ser humano é apenas dotado de potencialidades e de capacidades para aprender. É preciso, portanto, desenvolver o hábito do agir bem, a pessoa deve formar-se através de hábitos bons, tornando-se assim um ser de caráter, de bons hábitos e, por isso, virtuosa.

A polis é lugar de vivência das virtudes, lugar do agir bem, com prudência, com o objetivo de alcançar o mais sublime bem de seus cidadãos. É no ordenamento (organização) da polis, que o cidadão exercita as virtudes. É a polis que leva à aprendizagem das virtudes. A virtude não revela apenas um traço natural do caráter, mas insere-se no hábito, constitui parte integrante do comportamento e das ações do ser na sociedade.

A polis é o lugar onde o cidadão vive. Os indivíduos, por sua vez, são membros plenos da cidade, exercitam-se politicamente e obtêm o bem, isto é, realizam ações virtuosas e justas. A estruturação da vida da polis é manifestação do quanto as virtudes se tornaram parte integrante da vida dos cidadãos. A ação de cada cidadão deve ter como objetivo arquitetar a justiça na polis, não restrito ao indivíduo que habita um território determinado, porque a plena realização do bem deve atingir a nação ou o Estado.

3.    A justiça como equidade - parâmetro para a igualdade

Uma das mais influentes teorias da justiça do final do século passado foi a apresentada por John Rawls. Dirigida num primeiro momento para as sociedades ocidentais que aceitam a democracia como a melhor forma de organização da estrutura social, encontra nos escritos da maturidade do autor, a extensão para uma ordem internacional justa, chamada uma utopia realista. A preocupação anteriormente citada em relação à possibilidade de construção da justiça, numa sociedade internamente dividida, contempla o ordenamento interno de uma sociedade até alcançar a organização dos povos.

A constituição pluralista de uma sociedade e, por conseqüência, de todas as sociedades, não constitui um grave problema no entendimento de Rawls. Pelo contrário, está entre suas características marcantes. Sem a admissão dessa característica, nenhum cidadão ou líder poderá pensar num ordenamento justo e estável. A reflexão em torno da possibilidade de uma sociedade justa e estável compreende a aceitação de um Direito dos Povos endossado por todos, e por isso, capaz de dar conta das diferenças localizadas no interior de cada nação. Essa perspectiva de aceitação, em nenhum momento poderá ser compreendida como uma imposição de qualquer ordem, seja militar, econômica, política, cultural ou religiosa, porque o fato do pluralismo atravessa as sociedades e faz parte da existência da organização política.

Com o objetivo de proporcionar condições de relacionamento entre as diversificadas formas de estruturação das sociedades, a humanidade estabeleceu acordos (ou contratos), fomentou iniciativas de entre - ajuda, organizou uma estrutura diplomática entre outras iniciativas, justamente porque as diferenças existentes no seu interior não podem ser negadas e, sequer, eliminadas. As diferentes sociedades precisam acostumar-se com o que se chama o fato do pluralismo.7

O pluralismo não é apenas um evento isolado ou uma circunstância a ser tratada de maneira genérica, mas, sim, como característica fundamental do relacionamento entre as diferentes sociedades. As convicções fazem parte do que se pode chamar da cultura de fundo da sociedade. O conjunto de convicções políticas, religiosas e filosóficas que formam o fundamento, a partir do qual se estrutura a cultura pública e seu conteúdo –idéias e princípios básicos– são reconhecidos e formam a identidade própria de uma sociedade.

A cultura política de uma sociedade necessita encontrar uma base comum de aceitação, na qual seja possível a convivência, não apesar das diferenças, mas sabendo que as diferenças são constituintes da sua existência. As variadas concepções não podem sobrepor-se umas às outras, ou mesmo eliminar aquelas com menor capacidade de articulação e/ou projeção.

A proposição de Rawls supõe um sistema de cooperação entre todos, capaz de constituir uma sociedade equitativa. Essa proposição concebe cada membro da sociedade como sujeito dotado de capacidade de agir nas diferentes instâncias da estrutura social. A caracterização equidade aprimora o conceito de justiça, não no sentido de apenas legitimar ou acomodar as diferentes práticas (não raramente contraditórias) existentes no tecido social, mas no intuito de dotar de qualidade o ordenamento político-social. Na mesma perspectiva de qualificação, possibilita aos membros da sociedade condições para endossar essa concepção de justiça. A aceitação dessa concepção não ofusca ou nega as diferenças, porém os cidadãos assumem como sua a mesma concepção que se torna abrangente, respeitando e ordenando os conflitos presentes no interior da sociedade.

Para que seja possível, uma concepção de justiça deve penetrar na cultura política de uma sociedade, estabelecendo, aí, sua força de aglutinação e em condições de estabelecer a base para uma convivência pacífica conforme Rawls destaca no Liberalismo Político.

Isso é um sinal de que, se quisermos encontrar uma base de concordância pública, devemos buscar uma maneira de organizar idéias e princípios conhecidos numa concepção de justiça política que expresse essas idéias e princípios de um modo diferente do anterior. A justiça como eqüidade procura realizar esse intento valendo-se de uma idéia organizadora fundamental no interior da qual todas as idéias e princípios possam ser sistematicamente conectados e relacionados. Essa idéia organizadora é a sociedade concebida como um sistema eqüitativo de cooperação social entre pessoas livres e iguais vistas como membros plenamente cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida.8

Dada a impossibilidade de se estabelecer um parâmetro comum para o ordenamento das instituições9 e, diante da necessidade da organização eqüitativa da sociedade, em um sistema de cooperação entre os cidadãos, o equilíbrio reflexivo oferece as condições necessárias para articular uma concepção política de justiça. Essa forma de ver a justiça deverá gerar , no interior da sociedade, uma concordância em torno das bases fundamentais, de tal modo inter-relacionada que tenha condições de legitimar e de dar sustentabilidade a uma sociedade desigual. O equilíbrio reflexivo tem condições de gerar acordos refletidos e organizados que passam a ser válidos para todos, porque são livremente firmados entre os interessados e capazes de garantir uma estabilidade duradoura. Os membros de uma sociedade não têm motivos suficientes, exceto em casos de mudanças significativas no interior da sociedade, para alterar os acordos firmados, já que os cidadãos agem para preservar aquilo que foi acordado.

A arquitetura de uma sociedade -incluindo suas motivações, suas concepções, seu ordenamento, suas instituições, enfim, a forma como uma sociedade fundamenta e articula os seus planos forma a razão pública, característica dos povos democráticos e contém os elementos essenciais para que os cidadãos compartilhem uma concepção de cidadania igual. A razão pública tem em vista o bem público, isto é, aquilo que fundamenta a concepção de justiça para a estruturação de uma sociedade e os objetivos que devem ser alcançados. A razão pública é a condição para que os cidadãos, na sua condição de livres e iguais e contando com o fato do pluralismo, possam viver em sociedades democráticas. As doutrinas professadas pelos membros de uma sociedade são abrangentes e sustentadas pela razão pública e são possíveis, porque é estabelecido um equilíbrio razoável entre os cidadãos. As tensões, daí advindas, encontram legitimidade e correção no conteúdo da razão pública, e as doutrinas que se mostram incapazes de sustentar um equilíbrio razoável de valores situam-se à distância da razão pública.

Os princípios da justiça10, que contêm uma concepção de justiça como equidade ideal para a estruturação de uma sociedade justa, são possíveis porque têm sua origem na posição original.11 Nela, os cidadãos, que representam as partes constituintes da sociedade, são dispostos numa posição de igualdade e protegidos pelo véu de ignorância. Os acordos estabelecidos são justos, porque as partes estão livres de contingências arbitrárias e, estando em condições de igualdade, representam o equilíbrio de todas as forças sociais. Os princípios da justiça são a melhor resposta frente à realidade verificada no interior da sociedade. Quando válidos para todos, os princípios determinam a base para a estruturação de uma sociedade cooperativa entre pessoas livres e iguais. Numa sociedade bem ordenada, os princípios da justiça fornecem o conteúdo para a estruturação do ordenamento social. Nessa perspectiva, uma sociedade justa não está vinculada apenas ao planejamento eficiente para atingir determinados objetivos previamente acordados, entretanto, o conteúdo dos princípios constitui o fundamento de uma sociedade bem ordenada.

4.    Parâmetros para uma justiça internacional

As divisões que ocorrem no interior de uma sociedade, já referidas como constituintes, podem ser verificadas, também, nas relações entre os povos, embora precisam ser entendidas como integrantes da identidade dos povos. Nessa perspectiva, coloca-se a problemática em torno das condições de possibilidade para que as relações entre os povos sejam justas. As sociedades globalizadas, característica que determina as relações entre os povos, agora, exigem: de um lado, entendimento desse processo como integrante da evolução das relações políticas e culturais e, por outro, capacidade de perceber a urgente necessidade de estruturação dessas relações, de tal forma que uma convivência razoavelmente justa seja possível.

Coloca-se, novamente, a pergunta: Como a sociedade profundamente dividida pode ser justa? Agora, a extensão do questionamento não se restringe ao âmbito nacional, mas atinge o nível das relações internacionais. Uma sociedade baseada no Direito dos Povos constitui uma utopia realista e necessária, diante das diferentes problemáticas que assolam as relações internas das diferentes sociedades e, por conseqüência, estabelecem a agenda de preocupação das relações internacionais. Dentre os fatores que preocupam as relações internacionais, destacam-se a ameaça das diferentes formas de terrorismo e “a guerra injusta e a opressão, a perseguição religiosa e a negação da liberdade de consciência, a fome e a pobreza (...), o genocídio e o assassinato em massa”.12

A justiça internacional deve responder a essas situações decorrentes do ordenamento que os próprios membros (especialmente seus dirigentes) das sociedades estabeleceram ou originaram. Revela os interesses que estruturam e sedimentam as relações entre os povos, assim como as dificuldades que os membros das diferentes sociedades têm para um ordenamento razoável das relações entre si.

O Direito dos Povos representa uma tentativa de estabelecer as condições mínimas para um ordenamento justo das relações entre os povos. Isso não significa estabelecer o domínio de uma sociedade (ou grupo de) supostamente mais desenvolvida ou mais bem estruturada sobre as outras, mas alcançar as mínimas condições que caracterizem um ordenamento o mais justo possível.

Na opinião de Rawls, é essencial construir-se uma utopia realista, embora as condições, de fato, existentes demonstrem a sua quase improbabilidade. Essa utopia realista seria materializada quando os povos tivessem conseguido estabelecer um regime liberal ou decente.

A adoção comum de determinados princípios com conteúdo suficiente para ordenar as relações entre as sociedades e dirimir os principais conflitos que venham a ocorrer, representa as condições mínimas para que as sociedades se organizem de forma justa. Os princípios não têm valor absoluto, entretanto representam as condições para o ordenamento justo das sociedades em forma de cooperação. Os povos mantêm o direito à independência e à autodeterminação, ao mesmo tempo em que nenhuma sociedade subjuga a outra. Os princípios básicos, dessa forma, são reconhecidos pelos diferentes povos e governam sua conduta interna e a relação entre todos os povos. Rawls destaca os princípios tradicionais de justiça que regulam as relações entre os povos livres e democráticos, servindo de base e orientação para a estruturação do Direito dos Povos, embora precisem ser atualizados para responder às exigências próprias do contexto em que, atualmente, se encontra o desenvolvimento das sociedades.

1.   Os povos são livres e independentes, e a sua liberdade e independência devem ser respeitadas por outros povos.

2.   Os povos devem respeitar os tratados e compromissos.

3.   Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam.

4.   Os povos sujeitam-se ao dever de não intervenção.

5.   Os povos têm o direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa.

6.   Os povos devem honrar os direitos humanos.

7.   Os povos devem observar certas restrições específicas na conduta da guerra.

8.   Os povos têm o dever de assistir a outros povos vivendo sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou decente.13

A concepção em torno de uma ordem internacional justa supõe que todos aceitem uma concepção de justiça e sigam o ordenamento proposto. Contudo, essa normatização precisa permear a convivência entre os cidadãos de tal modo que todos possam se conformar àquilo que é acordado. Nesse sentido, Rawls entende que as instituições desempenham papel indispensável em favor da estruturação e da garantia das condições para a efetivação da justiça. Uma legislação dos povos não pode ser etnocêntrica ou representar a supremacia de sociedades mais fortes sobre outras de menor expressão, e isso não apenas pela diversidade constitutiva e característica dos povos, mas, também, e em especial, porque os membros da sociedade têm o direito de construir suas convicções específicas.

Nesse sentido, o critério de validação moral de uma concepção de justiça está na capacidade de integrar a razão pública da sociedade dos povos liberais e decentes que aceitam o Direito dos Povos. As sociedades assim estruturadas estão em condições de satisfazer o critério da reciprocidade. Esse critério qualifica todas as sociedades na condição de sujeitos. Os povos não precisam abandonar suas convicções específicas, nem mesmo renunciar às suas instituições. O critério da reciprocidade, na estruturação das sociedades marcadas pelo pluralismo, inaugura uma relação de igualdade, onde os povos aceitam essa relação de igualdade na diversidade, endossando uma concepção de justiça válida para todos que, pouco a pouco, vai formatando a estrutura sócio-política.

4.1. O princípio da tolerância

As diferenças que constituem as diversas sociedades (democráticas ou não), assim como, nas relações de natureza política e econômica14, estão na origem da justificativa do princípio da tolerância. As sociedades chamadas liberais que aceitam o Direito dos Povos têm o dever de aceitar outras maneiras de ordenamento social razoável, incluindo a necessidade de cooperar e dar assistência quando necessário15. Os povos que aceitam esse direito como norma de conduta sabem que, em outras sociedades, também estão presentes valores que não podem ser caracterizados como ameaça à sociedade liberal.

A tolerância se inscreve nesse contexto de diversidade sócio-política, o que possibilita vislumbrar que determinadas sociedades, embora não-liberais, têm uma constituição justa e, por isso, podem ser toleradas, oportunizando o estabelecimento das mais diversas relações. Essas sociedades Rawls chama de decentes. O princípio da tolerância previne contra sanções políticas e intervenção sumária ou julgamentos pré-concebidos – oriundos do preconceito, da falta de apuração isenta e mesmo de um precário conhecimento empírico. Contudo, a relação, em especial, a política externa, das sociedades liberais com as não-liberais será no sentido de direcionar a sua estruturação, objetivando que todas as sociedades sejam liberais.16

A relação de tolerância é parte integrante da razão pública do Direito dos Povos, inscrita na concepção liberal de ordenamento das sociedades. Decorre, daí, uma relação de “mão dupla”: de um lado, a certeza de que é impossível todas as sociedades estabelecerem o mesmo tipo de concepção na sua estruturação - nesse caso, a concepção liberal; de outro, a importância de se estabelecer o respeito mútuo entre os povos e cada um manter sua condição de sujeito no reconhecimento do outro a mesma condição. A tensão, de maior ou menor propensão, que ocorre na relação entre os povos, é parte integrante da constituição pluralista das sociedades. Nesse particular, o pluralismo faz parte da própria unidade social da sociedade.

O pluralismo, que exige de uma sociedade a construção da unidade, tendo a diversidade como constituinte, possibilita que, em seu interior, estejam presentes doutrinas diferentes e, não raras vezes, irreconciliáveis. É imperativo que essas mesmas doutrinas, em dado momento, se unam em favor da liberdade de expressão, de organização e de manifestação. Como exemplo, podem-se citar as diferentes organizações religiosas que convivem normalmente numa sociedade democrático-liberal. A unidade social, nessa mesma sociedade, dá-se a partir da admissão da pluralidade como constituinte e na aceitação da democracia constitucional como fator de unidade política. Rawls esclarece essa relação:

Este é o fato de que, em uma sociedade democrática constitucional, a unidade política e social não exige que os cidadãos sejam unidos por uma doutrina abrangente, religiosa ou não religiosa.17

O estofo da unidade é a concepção política, que está acima das concepções individuais, aceita por todos e sustentada pela razão pública. A razão pública oferece os fundamentos necessários e suficientes no qual a ação política se apóia.

Uma sociedade pluralista e bem ordenada supõe a existência do vigor democrático-constitucional como condição para o exercício livre e igual das liberdades. A tolerância e o exercício livre das liberdades, aceitas por todos os membros de uma sociedade, estabelecem as bases de ordenamento da rivalidade entre as diferentes doutrinas.

4.2. Os Direitos Humanos

As sociedades de matriz democrático-liberais têm como característica básica um sistema de cooperação entre todos os seus membros, assim como entre os diferentes Estados. Essa identidade associativa identifica os cidadãos-membros de grupos diferentes integrados num sistema social sem renunciarem às características que os identificam. A sociedade dos povos razoavelmente justa, por isso decente, segue determinados critérios, que a qualificam como membro efetivo da sociedade dos povos. Os Direitos Humanos inscrevem-se nessa gama de conquistas das sociedades democrático-liberais sem os quais não se pode caracterizar um Estado como decente e integrado a um amplo sistema de cooperação. O reconhecimento de que os Direitos Humanos são condição para a estruturação justa de uma sociedade supõe compreender a pessoa humana no seu status de sujeito de direitos. Dessa forma, é suplantada qualquer concepção de pessoa humana que a considere como simples meio para determinados fins.

Os Direitos Humanos estabelecem as bases para um Contrato Social em condições de responder às exigências implícitas nas sociedades contemporâneas com suas diversificadas formas de organização. O termo “sujeito de direitos”, o qual identifica os membros das sociedades que procuram respeitar e reconhecer os Direitos Humanos, na base de sua organização, ao mesmo tempo em que dota os cidadãos das condições necessárias para a participação efetiva na estrutura da sociedade, em decorrência dessa relação de interdependência, supõe que cada cidadão corresponda, reconhecendo os demais como merecedores dos mesmos direitos e cumpra com as obrigações inerentes à garantia dessas mesmas condições. Os Direitos Humanos são uma conquista de toda a humanidade, devem ser entendidos como parte da evolução das relações humanas e sociais, assim como da capacidade dos cidadãos de estabelecer parâmetros de ordenamento pessoal e social, que permita uma convivência justa entre membros diferentes.

John Rawls18 estaca os principais direitos que precisam ser garantidos e usufruídos como condição para a existência de uma sociedade cooperativa.

Entre os direitos humanos estão o direito à vida (aos meios de subsistência e segurança); à liberdade (à libertação de escravidão, servidão e ocupação forçada, e a uma medida de liberdade de consciência suficiente para assegurar a liberdade de religião e pensamento); à propriedade (propriedade pessoal) e à igualdade formal como expressa pelas regras de justiça natural (isto é, que casos similares sejam tratados de forma similar).

O desrespeito aos Direitos Humanos, no atual estágio de desenvolvimento da sociedade, não encontra qualquer justificativa moral. Nesse sentido, o sistema de direitos caracteriza um sistema de cooperação sócio-política decente porque as pessoas estão unidas por um sistema de deveres e de obrigações morais como parte integrante da concepção de justiça. Nessa mesma perspectiva, os direitos humanos desempenham um papel regulador e limitador no exercício da autonomia de um regime. Um Estado encontra, no respeito à pessoa humana, o limite de sua atuação, ao mesmo tempo em que a intervenção interna em outro país se justifica para a proteção dos Direitos Humanos. Assim entendido, a guerra como integrante da política de Estado ou de governo, carece de legitimidade moral. O limite da autonomia do Estado é determinado pela esfera moral. Com isso, é estabelecida a decência das instituições em conformidade com a esfera jurídico-instituciional, previnem-se intervenções que possam submeter povos à força militar e garante-se o ordenamento político sem suplantar o pluralismo característico das relações entre os povos.

Afirma-se, dessa forma, uma relação de interdependência entre os Direitos Humanos, a justiça, a ordem democrática e a construção da paz. Onde não se estabelece a primazia dos Direitos Humanos, a democracia é inconsistente, as instituições carecem de legitimidade ou são manipuladas por interesses alheios ao conjunto dos interesses dos membros da sociedade e, consequentemente, a paz torna-se impossível. A assimilação dos Direitos Humanos é condição indispensável para a estruturação da ordem social justa, assim como fator determinante para as políticas de desenvolvimento econômico e social.

Os valores que sedimentam uma sociedade democrática são fator determinante para a estabilidade. Os membros da sociedade assimilam os valores de uma sociedade bem ordenada, desenvolvem um senso de justiça na medida em que, efetivamente, participam do mundo social assim ordenado. Quando, no interior das sociedades, os cidadãos se habituam ao senso de justiça, sua conduta adequa-se às orientações daí advindas, conquistando confiança e credibilidade interna e nas relações internacionais. Uma sociedade caracterizada por um ordenamento justo, respeitando os demais povos, conquista uma igualdade justa. As sociedades democráticas são capazes de construir o que Rawls chamou de paz democrática, consequência do respeito entre os seus membros e com os demais povos. Os interesses razoáveis tornam possível a paz democrática.

5.    Globalização e tolerância

Além do pensamento de John Rawls, cuja Teoria da Justiça tem caracterizado as diferentes reflexões em torno dos temas da justiça e das relações internacionais, os demais campos de interesse a ela correlatos, têm, em Amartya Sem, um referencial indispensável, especificamente no fecundo diálogo entre Economia e Filosofia. O interesse, neste momento, considerando dois textos de Sen, é vislumbrar a necessidade de uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os aspectos apontados pelo atual estágio em que se encontra o processo de globalização. As diversificadas organizações sócio-político-culturais e religiosas, caracterizadas por Rawls, presentes no interior das sociedades e nas relações internacionais, situam-se num patamar diferenciado e mais exigente conforme evolui o processo de globalização. A humanidade vê-se diante de situações, por um lado, ameaçadoras e, por outro, com possibilidades reais de superação das graves deficiências.

A necessidade de uma análise, a partir de uma perspectiva integradora, distante de concepções pré-concebidas e que privilegiam apenas um viés da problemática considerada, permite a percepção e a valorização das conquistas daí advindas, ao mesmo tempo em que aponta as graves deficiências ameaçadoras da relação entre Estados, povos e organizações da sociedade. As diversidades, nos mais diferentes aspectos humanos, sociais e culturais, são inegáveis - assim como caracterizam a estética do ordenamento das relações humanas, também destacam a necessidade das condições para a convivência justa entre os diferentes atores. O mundo em processo de globalização, cada vez mais acelerado, é interdependente, diverso e tolerante.

5.1. Globalização e interdependência

O processo de integração dos povos ocorre através dos mais diferentes mecanismos e consiste num processo progressivo, cujas origens remontam à própria existência da humanidade. Os homens não sobrevivem sem estabelecer relações em todos os níveis. Nessa perspectiva, é necessário, não apenas se distanciar da concepção que considera a globalização como uma invenção ocidental, uma imposição dessa mesma cultura, mas, também, da tentação de caracterizar as demais sociedades e suas especificidades como inferiores.19

Compreender a globalização como um fenômeno originado exclusivamente no mundo ocidental, especificamente na Europa, denota uma visão pré-conceituosa e a incapacidade de percepção de outros movimentos histórico-culturais que, ao longo da história, contribuíram para o estabelecimento de relações integradoras e para a superação de entraves existentes nas diferentes formas de organização dos povos. Uma perspectiva integradora dá condições de entender as descobertas da humanidade como provenientes da contribuição dos mais diversos atores sociais, não permitindo a apropriação individual das conquistas que a todos beneficiam. As grandes conquistas da humanidade não podem ser patenteadas. Um exemplo que denota a importância dessa compreensão é o uso do seno pela trigonometria moderna, cuja origem remonta ao grande matemático indiano Aryabhata, que recebeu, posteriormente, influência da cultura árabe e latina para atualmente, ser de domínio universal.20

Da mesma forma, relevantes contribuições próprias de um determinado período ou de determinada cultura devem ser reconhecidas e catalogadas primeiro, como feitos determinantes para a evolução de um período específico de uma sociedade e, posteriormente, para toda a humanidade.

O Renascimento e a Revolução Industrial, de origem essencialmente européia, constituem exemplos dignos de reconhecimento. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a globalização não é uma descoberta marcadamente ocidental, nem mesmo um processo de involução da organização das sociedades, senão conseqüência de uma variedade de particularidades ocorridas ao longo da história universal e cuja origem não pode ser especificamente detectada. Veja-se a descrição do autor aqui citado.

De resto não é nem nova nem necessariamente ocidental; tampouco é uma maldição. Durante milhares de anos, a globalização contribuiu para o progresso do mundo através das viagens, do comércio, da migração, das muitas influências culturais e da disseminação do conhecimento e do saber (incluindo a ciência e a tecnologia) Há casos em que as inter-relações globais têm sido essenciais para o desenvolvimento de países inteiros.21

Constitui grave erro considerar a globalização como conseqüência de uma cultura ou de uma concepção particular. Da mesma forma que entendê-la como um processo de ocidentalização do mundo. A dimensão alcançada pelo processo de globalização exige seu reconhecimento como conseqüência da interconexão dos mais variados fatores, inclusive, os não-restritos à ciência e à tecnologia. A globalização é, dessa forma, um patrimônio de toda a humanidade. À humanidade cabe a responsabilidade pela sua formação, ao mesmo tempo em que as mazelas verificadas no seu interior, em especial as gritantes desigualdades econômicas e políticas, necessitam de um balizamento ético, com vista a uma convivência equilibrada entre os diversos atores com características e formação marcadamente diferenciadas.

Além disso, os temas que envolvem o universo da globalização necessitam de consideração isenta de qualquer concepção reducionista. Num primeiro momento, trata-se de não estabelecer uma compreensão de que a globalização é um fato que precisa ser combatido ou destruído. Essa concepção tem caracterizado determinados protestos e proposições pela insegurança dos seus propositores, não raras vezes caracterizados pela ingenuidade e falta de clareza conceitual, assim como das relações que se estabelecem a partir de um fenômeno de tal complexidade e alcance que tem transformado as relações interpessoais, principalmente, entre as nações. A aceitação sem a crítica necessária e a percepção dos interesses envolvidos, especialmente nas relações comerciais e econômicas, conduz às mesmas atitudes acima referidas. Numa outra perspectiva, a globalização necessita de uma percepção crítico-realista que considere as reais perspectivas apresentadas e as condições para a melhoria, seja das condições de vida dos membros da sociedade global, assim como, a qualificação das relações daí advindas, agora sim com a rigorosa crítica sempre necessária diante das diferentes proposições com as quais nos defrontamos constantemente. As conclusões de Amartya Sen22 ilustram a necessidade de uma postura crítica e equilibrada diante da complexidade desse tema.

O problema central não é a globalização em si, nem a utilização do mercado enquanto instituição econômica, se não a desigualdade que priva dos arranjos globais institucionais - o qual produz por sua vez uma distribuição desigual dos dividendos da mesma globalização. A pergunta, portanto, não reside se os pobres do mundo podem ou não obter algo do processo de globalização, mas sob que condições podem obter uma parte realmente justa. Urge reformas os acordos institucionais – em adição aos nacionais – para erradicar os erros que resultam tanto das omissões como das proposições, que tendem a reduzir drasticamente as oportunidades dos pobres em todo o mundo. A globalização merece uma defesa arrazoada, da mesma forma que requer uma reforma razoável.

O mundo contemporâneo, marcado pelas relações interdependentes sabe que não cabe o monopólio, seja da geração dos problemas que o afetam ou a proposição de alternativas, a lideres, a instituições, a Estados ou a outros. É muito importante reconhecer e reconhecer-se membro da diversidade constitutiva do mundo contemporâneo. Nesse contexto de diversidade, cabe ressaltar duas conquistas de toda a humanidade, que têm alcançado um patamar determinante nas preocupações e na retórica do debate político-institucional como referenciais indispensáveis: a Democracia e os Direitos Humanos. Tal consideração se deve no momento em que são tratados temas que envolvem as diversificadas e dependentes relações políticas, sociais, econômicas e religiosas contemporâneas. Tanto a Democracia quanto os Direitos Humanos podem ser catalogados como condição para a convivência em sociedades diversificadas e interdependentes, assim como indispensáveis nos debates em torno do desenvolvimento.

5.2. Diversidade e tolerância

Dentre as grandes conquistas do processo de globalização, destaca-se a maior e melhor comunicação entre todos os povos, embora devam ser consideradas as persistentes desigualdades já mencionadas. Na mesma proporção, são reveladas as peculiaridades que estruturam e caracterizam os membros das sociedades e suas diversificadas maneiras de se relacionar.

 John Rawls sintetizou sua preocupação em relação às desigualdades caracterizando as diferenças como filosóficas, religiosas e morais; o processo de globalização não pode desconsiderá-las nem tampouco suplantá-las de forma aritmética. Amartya Sen, convencido dessa diversidade humana generalizada, destaca a necessidade de considerar as desigualdades como um fator determinante para os problemas de ordenamento das sociedades e da convivência entre as pessoas:

A diversidade humana não é nenhuma dificuldade secundária (a ser ignorada, ou a ser introduzida ‘mais tarde’); ela é um aspecto fundamental de nosso interesse pela igualdade.23

A pergunta que pode sintetizar a problemática em questão pode ser assim formulada: Como, em face da diversidade que constitui as sociedades, é possível estabelecer relações equilibradas e justas num universo globalizado?

Como existem diferenças na estruturação das relações entre países e no interior desses, também é indispensável reconhecer as especificidades que ocorrem no interior de cada cultura, porque tais culturas contêm elementos que afloram tensões e dificuldades de organização e também enunciam formas de opressão e de intolerância, as quais precisam ser reconhecidas para uma estruturação justa da convivência nas sociedades. O princípio da tolerância inscreve-se nesse contexto, onde é impossível estabelecer uma igualdade aritmética, e medidas de opressão não encontram justificativa moral nem viabilidade política. O problema central da globalização não se encontra restrito apenas à distribuição dos benefícios, contudo esse não é um motivo para que sejam desconsiderados.24

Considerando-se a necessidade de reconhecimento da diversidade humana, a tolerância impõe-se como um imperativo de amplo alcance e repercussão. Em muitas situações, a argumentação em favor da tolerância, restringiu-se ao âmbito da diplomacia governamental que tem proporcionado significativos avanços nas relações entre os Estados. Da mesma forma, as relações entre as religiões percorreram o mesmo caminho do qual frutificaram importantes acordos e relações de tolerância com repercussão e significado reconhecidos. Nesse aspecto, cabe ressaltar que os representantes das diferentes partes estão restritos a personalidades da diplomacia dos Estados, altos funcionários e líderes religiosos com delegação e função instituída. O princípio da tolerância, atualmente, não pode ser limitado à esfera da representação institucional. Amartya Sen afirma a importância da pluralidade de interlocutores na construção das relações entre os diferentes membros da sociedade: “É importante ouvir as vozes dissidentes em cada sociedade.”25 A introdução de outros interlocutores (outras vozes) não tira a legitimidade de acordos oficiais, mas introduz diversas formas de interlocução, viabilizando acordos com a participação de novos membros na condição de sujeitos.

A diversidade presente nas culturas clama por um relacionamento que ultrapasse os limites estabelecidos pelos poderes instituídos politicamente. As negociações ampliam-se além do monopólio dos líderes religiosos e políticos, estabelecendo outros critérios e patamares de relacionamento, mais amplos e menos segmentados. Especificamente, nesta época de globalização, as relações entre as partes, particularmente, as de âmbito internacional, precisam superar relações marcadas pelo pré-conceito ou pelas generalizações que situam regiões geográficas ou culturas, nas quais aparecem, em primeiro plano, as diferenças não raramente marcadas por interesses de grupos dominantes, em detrimento das claras possibilidades de relacionamentos caracterizados pela cooperação.

A conclusão de Sen elucida como se pode estabelecer uma relação de tolerância e cooperação, a partir de uma sistemática que situe os membros da sociedade na condição de sujeitos:

Uma abordagem adequada do desenvolvimento não pode realmente concentrar-se tanto apenas nos detentores do poder. É preciso mais abrangência, e a necessidade da participação popular não é uma bobagem farisaica. A idéia de desenvolvimento não pode, com efeito, ser dissociada dessa participação.26

6.    Conclusão

As sociedades, em sua caracterização diversificada, e quanto mais essas diferenças se manifestam e são reconhecidas, demandam dos seus membros, rigorosa reflexão. Especialmente daqueles que têm qualquer responsabilidade de dirigir os diferentes campos da organização social, para assim encontrar os melhores balizamentos éticos, com o objetivo de responder às variadas situações que se apresentam. Nesse sentido, é indispensável a afirmação e o reconhecimento de que as sociedades tanto no seu interior como nas mais diversas relações que entre si estabelecem são caracterizadas como diferentes. Disso, decorre a certeza de que a construção da justiça não tem qualquer possibilidade de ocorrer de forma aritmética ou igualitária. É sempre mais atual a pergunta provocativa de Jonh Rawls sobre como é possível uma sociedade marcada por profundas diferenças ser justa. A justiça, portanto, tanto em nível nacional como internacional, supõe a existência das diferenças como fator constituinte. A tentativa de destruição ou desconsideração das diferenças, empiricamente já demonstradas, condena, em sua origem, qualquer tentativa de estabelecer parâmetros de justiça.

Reafirma-se, dessa forma, que o maior problema das sociedades, atualmente, está relacionado às gritantes diferenças verificadas no interior de suas relações como anteriormente mencionadas. Amartya Sen27 verifica o paradoxo presente na atual estruturação das sociedades, em que persistem quadros de fome abominável, ao mesmo tempo em que se verifica um crescimento da produção sem precedentes. Contudo, o mesmo pensador, destaca que o mundo moderno aceita conviver com essa situação como parte integrante de sua constituição, como se isso fosse inevitável. Eis o dilema com o qual se defronta a ética política atualmente.

A humanidade necessita de parâmetros para que as suas relações sejam construídas de forma cada vez mais justa. Nesse sentido, a ética, que não tem como objetivo oferecer fórmulas para a solução de problemas específicos, reveste-se da responsabilidade de responder ao clamor presente nos vórtices da organização das sociedades e apresentar princípios que perpassem as relações entre os povos e o interior das sociedades servindo de fundamento para os necessários julgamentos e proposições demandadas pelos diferentes atores sociais, estejam eles explicitados ou não. É indispensável reafirmar as conquistas que a humanidade alcançou no decorrer de sua existência, especificamente: a democracia, as liberdades, os princípios da justiça e o princípio da tolerância como referenciais seguros para o aprimoramento do existir humano e social.

Notas

1. Rawls, J., O liberalismo Político, São Paulo, Atica, 2000, p. 25.

2. Capra, F. A teia da vida, São Paulo, Cultrix, 1996, p. 27, elucida essa perspectiva com a seguinte afirmação: “O que é bom, ou saudável, é o equilíbrio dinâmico; o que é mau, ou insalubre, é o desequilíbrio – a ênfase excessiva em uma das tendências em detrimento da outra”.

3. Na introdução do livro The quality of life, Nussbaum e Sen comentam a necessidade de ampliar o espaço de avaliação dos problemas que envolvem a vida das pessoas: “O problema, atualmente, é ainda mais complexo. Pois, se nós, realmente queremos saber mais sobre o crescimento de Sissy Jupe e seus compatriotas, precisamos saber não apenas sobre o dinheiro que eles têm ou não têm, mas as variadas relações que eles são capazes de estabelecer em suas vidas. [...] Enfim, para pensar melhor sobre o problema de Sissy, julgamos precisar de um tipo de descrição hábil e complexa do que as pessoas são capazes de fazer e ser.” Sen, A. Nussbaum, M., The quality of life, Oxford, Clarendon Press, 1993, p. 1.

4. Platão, A República, São Paulo, Martin Claret, 2003, p. 16.

5. Nythamar de Oliveira (Cf. Teoria ideal e teoria não-ideal em Platão, Kant e Rawls, en Veritas. V. 49. Nº. 4. Dez. 2004, p. 709-725) apresenta essa estrutura que possibilita pensar uma sociedade justa a partir de uma concepção ideal de justiça. “Desse modo, as concepções platônicas do bem, da justiça, das idéias, etc, fazem parte de um todo orgânico, uma epistemologia ao mesmo tempo metafísica e moral, onde a alma humana figura como ponto de encontro do macrocosmos e do microcosmos, do sensível e do inteligível, das aparências e da realidade, do não ideal e do ideal. [...] A polis ilustra e molda o ser humano, assim como a alma governa e informa o indivíduo viabilizando a própria vida humana.”

6. “Essa forma de justiça é, portanto, uma virtude completa, porém não em absoluto e sim em relação ao nosso próximo. Por isso, a justiça, é muitas vezes, considerada a maior das virtudes, e nem ‘Vésper, nem a estrela-d’alva’ são tão admiráveis; e proverbialmente, na justiça estão compreendidas todas as virtudes. E ela é a virtude completa no pleno sentido do termo, por ser o exercício atual da virtude completa.” (Aristóteles, Ética a Nicômaco, Bauru: EDIPRO, 2002, p. 122)

7. O fato do pluralismo normalmente percebido de maneira mais explícita entre nações com características bastante divergentes, também supõe variações internas nas próprias compreensões políticas e ideológicas, com as quais os membros de uma sociedade precisam aprender a conviver e aceitar como normais, como atesta Rawls: “Essas condições históricas incluem, em uma sociedade interna, razoavelmente justa, o fato do pluralismo razoável. Na sociedade dos povos, o paralelo do pluralismo razoável é a diversidade entre povos razoáveis, com suas diferentes culturas e tradições de pensamento, tanto religiosas como não religiosas. Mesmo quando dois ou mais povos têm regimes constitucionais liberais, as suas concepções de constitucionalismo podem divergir e expressar diferentes variações de liberalismo.” (Rawls, J., O direito dos povos, São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 15).

8. Rawls, O liberalismo Político, cit., p. 51.

9. Rawls define as instituições: “Por instituição entendo um sistema público de regras que define cargos e posições com seus direitos e deveres, poderes e imunidades, etc. Essas regras especificam certas formas de ação como permissíveis, outras como proibidas; criam também certas penalidades e defesas, e assim por diante, quando ocorrem violações.” (Rawls, J., Uma teoria da justiça, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 58).

10. Os princípios da justiça propostos por John Rawls para a organização das sociedades de forma justa e eqüitativa entre cidadãos livres e iguais, são perpassados pela exigência da igualdade e da liberdade, seu conteúdo determina o ordenamento das instituições de maneia a serem a protagonistas de uma organização justa. Os princípios são: “a) Todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto esse compatível com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor eqüitativo garantido. b) A desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, segundo, devem representar o maior benefício para os membros menos privilegiados da sociedade.” (Rawls, O liberalismo Político, cit., p. 47).

11. Rawls, ao afirmar que os princípios escolhidos devem ser aceitos por todos do ponto de vista moral, define a posição original: “A posição original é definida de modo a ser um status quo no qual qualquer consenso atingido é justo.” (Rawls, Uma teoria da justiça, cit., p. 129).

12. Rawls, O direito dos..., cit., p. 7.

13. Ibid., p. 47.

14. John Rawls procura descrever os conflitos sem que transpareça qualquer impossibilidade de solução dos conflitos daí decorrentes: “A possibilidade da paz democrática não é incompatível com as democracias atuais, marcadas por considerável injustiça, tendências oligárquicas e interesses monopolistas, intervindo, muitas vezes abertamente, em países menores ou mais fracos e mesmo em democracias menos bem sucedidas e seguras.” (Ibid., p. 62).

15. As sociedades liberais não estão isentas de possíveis desvios, conforme Rawls esclarece: “Certamente o mundo social dos povos liberais e decentes não é um mundo que, pelos princípios liberais, seja plenamente justo”. (Ibid., p. 81) Do que podemos afirmar a necessidade de sustentar a necessidade do respeito mútuo entre os povos como parte integrante da estrutura básica e essencial para o clima político necessário para o ordenamento das relações entre as diferentes sociedades. Nessa relação todos têm a ganhar.

16. John Rawls reconhece que existem cinco tipos de sociedades nacionais: os povos liberais, os povos decentes, os Estados fora da lei, as sociedades oneradas por condições desfavoráveis e os absolutismos benevolentes.

17. Ibid., p. 163.

18. Ibid., p. 85.

19. Amartya Sen percebe essa limitada concepção ao afirmar: “Da globalização se afirma constantemente que se trata de um processo de ocidentalização do mundo. A esse respeito parece haver um acordo tácito entre seus defensores e seus detratores.” Para depois perguntar: “É a globalização realmente uma maldição ocidental.” (Sen, A. Desigualdade reexaminada, Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 2001).

20. A história da evolução da palavra seno é descrita por Howard Eves apud Amartya Sen (Cf. Desenvolvimento como liberdade, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 279) “Aryabhata denominou-o ardha-jya (‘meia orla’) e jya-ardha (corda pela metade), depois abreviou o termo empregando simplesmente jya (‘corda’). De jya os árabes foneticamente derivaram jiba, que, seguindo a prática árabe de omitir vogais, foi escrito como jb. Acontece que jyba, exceto por seu significado técnico, é uma palavra sem significado em árabe. Escritores posteriores que depararam com jb como abreviatura da palavra jyba,sem significado, substituíram-na por jaib, que contém as mesmas letras e é uma boa palavra árabe que significa ‘enseda’ ou ‘baía’. Mais tarde ainda, Gerardo de Cremona (circa 1150), ao fazer suas traduções do árabe, substituiu jaib por seu equivalente em latim, sinus (significando ‘enseda’ ou ‘baía’), daí derivando nossa atual palavra seno)

21. Sen, Desigualdade reexaminada, cit.

22. Ibidem.

23. Ibid., p. 24.

24. Em relação a isso, Sen focaliza os campos que precisam ser contemplados quando uma questão dessa natureza é tratada e se quer discutir a possibilidade de relações mais justas: “O fato principal se relaciona com a desigualdade – tanto internacional como intranacional. As desigualdades são múltiplas: disparidades no bem estar, severas assimetrias nos equilíbrios de poder e oportunidades políticas, sociais e econômicas decrescentes. Outra pergunta refere-se à distribuição das garantias potenciais da globalização – tanto entre países ricos e pobres, como entre os diferences grupos sociais de um mesmo país. Não basta entender o que os pobres de todo o mundo requerem da globalização, tanto quanto os ricos, também é necessário assegurar que obtenham o que necessitam. Para advogar em favor da globalização não necessárias reformas institucionais massivas, assim como mais clareza na formulação das perguntas sobre os temas relacionados à distribuição.” Sen, Desigualdade reexaminada, cit.

25. Sen, Desenvolvimento como liberdade, cit., p. 282.

26. Ibidem.

27. Ibid. p. 236

Referencias

1. Rawls, J. O liberalismo Político. São Paulo, Atica. 2000. pp. 25.        [ Links ]