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Paradígma
versión impresa ISSN 1011-2251
Paradìgma v.27 n.2 Maracay dic. 2006
O estudo do discurso em educação matemática: a problematização de significados hegemônicos sobre resolução de problemas
Maria Aparecida Vilela Mendonça Pinto Coelho, Dione Lucchesi de Carvalho
Universidade Federal de São Carlos. SP Brasil
Universidade Estadual de Campinas. SP Brasil
Resumo
A perspectiva de resolução de problemas com a qual trabalhamos neste artigo tem como foco as significações coletivamente produzidas em relações discursivas de professores de Matemática, consideradas como a interação dialética entre psiquismo e ideologia. Inicialmente pensávamos que o aporte teórico vygotskyano nos permitiria apenas analisar o material empírico produzido nas relações dialógicas dos professores em reuniões pedagógicas e identificar a reprodução dos discursos hegemônicos e a adesão maior a um ou a outro. Todavia este referencial nos permitiu ir além, até mesmo analisar a problematização das concepções contidas nesses discursos. No processo de análise pudemos perceber mudanças nas concepções dos professores sobre resolução de problemas, o que nos levou a inferir sobre a importância de um grupo para reflexões sobre as práticas pedagógicas e o conseqüente processo de constituição profissional dos professores participantes. Podemos reconhecer, referendados em Backtin, o papel central do outro na produção das significações que se realizam em um processo contínuo de construção
Palavraschaves: Significação em Educação Matemática; Problematização; Sentidos e Significados em Educação Matemática; Resolução de Problemas no Ensino de Matemática.
Resumen
La perspectiva de resolución de problemas con la que trabajamos en este artículo tiene como foco los significados colectivamente producidos en relaciones discursivas de profesores de Matemática, consideradas como la interacción dialéctica entre psiquismo e ideologia. Inicialmente pensábamos que el aporte teórico vygotskyano nos permitiría sólo analizar el material empírico producido y las relaciones dialógicas de los profesores en reuniones pedagógicas e identificar la reproducción de los discursos hegemônicos y la adhesión mayor a uno o a otro. Sin embargo, este referencial nos permitió ir mas lejos, o incluso analizar la problematización de las concepciones contenidas en esos discursos. En el proceso de análisis pudimos notar cambios en las concepciones de los profesores sobre resolución de problemas, lo que nos llevó a hacer inferencias acerca de la importancia de un grupo para reflexiones sobre las prácticas pedagógicas y el consecuente proceso de constituición profesional de los profesores participantes. Podemos reconocer, apoyados en Backtin, el papel central del otro en la producción de las significaciones que se realizan en un proceso contínuo de construcción.
Palabras claves: Significado en Educación Matemática; Problematización; Sentidos y Significados en Educación Matemática; Resolución de Problemas en la Enseñanza de Matemática.
Abstract
The approach to problem solving we take in this article focuses on the meanings produced collectively in Math teachers discourse relations, considered as the dialectic interaction between psychology and ideology. At first we thought the Vygotskyan theoretical foundation would only allow us to analyze the empiric material produced in the teachers dialogic relations in pedagogical meetings and identify the reproduction of the hegemonic discourses as well as the greater adherence to one or the other. However, this reference has allowed us to go beyond, and even analyze the problematization of the conceptions in these discourses. In the course of the analysis we could notice changes in the teachers concepts towards problem solving, which has led us to make inferences over the importance of a reflection group on the pedagogical practices and the subsequent process of Professional constitution of the participant teachers. We could recognize, referring to Backtin, the central role played by the other in the production of meanings that are construed along the continuous process.
Keywords: Meaning in Mathematical Education; Problematization; Senses and Meanings in Mathematical Education; Problem Solving in Math Teaching.
Recibido: 18/07/2006 Aceptado: 08/11/2006
Introdução
Este artigo é baseado na investigação de Mestrado de uma das autoras (COELHO, 2005) que foi orientada pela outra autora. O trabalho de campo desta pesquisa se constituiu em reuniões pedagógicas mensais oficiais, mas não obrigatórias; oficiais porque promovidas pela Secretaria Municipal de Educação1 e não obrigatórias porque os professores podiam escolher entre diversas opções de horários, datas e locais.
As reuniões de professores se constituíram em um contexto que possibilitou a compreensão das significações produzidas pelos participantes em seus diálogos. A palavra do outro proporcionou possibilidades de reflexão dos temas abordados e oportunidades de debates e trocas de experiências. De acordo com Bakhtin (2000), a palavra reflete alterações imperceptíveis da existência social e é esse entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo capaz de evoluir.
Para desenvolver a análise foram retomadas as idéias de Polya (1978) considerado como o principal precursor desse debate , as desenvolvidas no âmbito das ciências cognitivas, principalmente por Schoenfeld (1987) e as de Onuchic (1999). O privilegiar dessas concepções se deve a razões históricas dentro da Educação Matemática, além do que as preconizadas por Onuchic (1999) vêm adquirindo uma certa hegemonia no tema, devido à menção a elas nos documentos oficiais brasileiros (BRASIL, 19982). A nossa suposição era que estas idéias seriam trazidas, mesmo que implicitamente, pelos professores nas reuniões, podendo assim nos esclarecer sobre suas concepções referentes à Resolução de Problemas como prática pedagógica. A perspectiva com a qual trabalhamos se diferencia das que embasam essas idéias e concepções, pois têm como foco as significações coletivamente produzidas na interação dialética entre psiquismo e ideologia. Buscamos avançar teoricamente em um referencial que nos auxiliou também a compreender as discussões que professores de Matemática vêm fazendo sobre o tema; em tais discussões não só eles expressam suas idéias sobre resolução de problemas, mas também problematizam sua prática pedagógica.
Polya (1978) influenciou de maneira positiva os rumos da Educação Matemática com a valorização da Resolução de Problemas, colaborando mesmo para a criação de um novo paradigma. Apresentou a Resolução de Problemas como uma exigência cognitiva imprescindível na aprendizagem da Matemática e elaborou um método para ensinar os alunos a aperfeiçoarem as técnicas de resolução. Contribuiu também para o renascimento da moderna heurística, que estuda os métodos e regras que conduzem à descoberta e à invenção. Uma outra colaboração importante foi incentivar o pensamento intuitivo na Matemática, quebrando um pouco o aspecto perfeito e bem acabado que amedrontava e desencorajava os alunos a partirem para buscar a solução dos problemas.
Os trabalhos desenvolvidos pelo grupo das Ciências Cognitivas também tiveram grande impacto nas pesquisas sobre Resolução de Problemas e nas práticas pedagógicas que envolvem o tema. As fontes que nutriram o desenvolvimento das Ciências Cognitivas foram várias, desde os aportes derivados dos debates entre o racionalismo e o empirismo, até o Simpósio sobre a Teoria da Informação no Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT) e a publicação dos trabalhos sobre lingüística numa perspectiva chomskyana. A Psicologia Cognitiva adota o enfoque segundo o qual o ser humano é concebido como um processador ativo de informação e aceita a analogia entre a mente humana e o computador, adotando os programas computacionais como metáfora do funcionamento cognitivo humano. Apresentam uma teoria bem estruturada e fundamentada sobre Resolução de Problemas, encarando a questão sob vários ângulos. A forma descritiva que podemos notar nas experiências de sala de aula realizadas pelo grupo realmente fornece informações detalhadas sobre o tema. É o caso dos resultados apresentados por Schoenfeld (1987), que realizou estudos de bons solucionadores de problemas e procurou por regularidades em seu comportamento.
Onuchic (1999) apresenta como ponto central do seu trabalho o ensinoaprendizagem de Matemática através da Resolução de Problemas e a crença de que desta forma é possível ajudar os alunos a compreender os conceitos, os processos e as técnicas operatórias necessárias à resolução dos mesmos. Defende que entender é essencialmente relacionar e que a compreensão aumenta quando o aluno é capaz de relacionar uma determinada idéia matemática a um grande número de problemas ou a uma variedade de contextos. A capacidade de relacionar um dado problema a idéias matemáticas implícitas nele e de construir relações entre elas pode ajudá-lo consideravelmente no processo de compreensão.
Da dimensão técnica à dimensão problematizadora
Percebemos que as questões focadas nas pesquisas desenvolvidas no âmbito das concepções de Resolução de Problemas de Polya (1978), das Ciências Cognitivas (SHOENFELD, 1987) e de Onuchic (1999) são voltadas para descrições de estratégias de sujeitos, desejáveis ou ocorridas, e recomendações pedagógicas aos professores que ensinam Matemática. Como nossas pesquisas focam o discurso em sala de aula e em reunião de professores, consideramos que, para constituição do corpo teórico, tivéssemos como interlocutores Vygotsky (1995, 20023) e também dois investigadores que trabalham nessa perspectiva: Pino (2000) e Smolka (2004). Inicialmente buscamos esclarecer os termos perspectiva histórico-cultural, significações e funções psicológicas superiores. Para a análise das relações entre os signos e psiquismo e ideologia procuramos interlocução com Bakhtin (1981, 2000, 2004) e com um educador matemático colombiano que desenvolveu sua pesquisa de doutorado baseado na teoria bakhtiniana (JIMÉNEZ, 2002).
Consideramos inicialmente que este aporte teórico nos permitiria apenas analisar o material empírico produzido nas relações dialógicas dos professores e identificar a reprodução dos discursos hegemônicos e a adesão maior a um ou a outro e o que verificamos foi também o problematizar dessas concepções. O episódio que se segue pode nos dar uma idéia de como os professores questionaram as formas de ensinar Matemática, tentando encontrar caminhos que lhes pareciam mais seguros. A professora Carla levanta a necessidade de aprender uma maneira mais fácil de trabalhar e o professor Pedro se refere à questão do formalismo:
CARLA Nós temos que fazer um curso para aprender uma maneira mais fácil de trabalhar. Como ensinar subtrair um sinal de mais, mas de forma diferente. Você falava: sinal de menos tem que somar; dois sinais de menos somados dava menos, você marca ...dois reais, um quilo de arroz, dois reais você vai subtrair ou somar? Vou somar, professora; eu não estou devendo... Então, mesma coisa o sinal de menos. Precisaria estar discutindo também.
PEDRO Nós concordamos com o que você está dizendo. Tem que modificar a estrutura de aula, tem que trabalhar com projetos. Agora é o seguinte: e o tempo que você perde ou investe na elaboração disso, na aplicação disso... tem que reformular o livro didático. Agora, por outro lado, você também vai concordar comigo: porque você está dando Química, o formalismo é necessário. Você vai falar: escreve lá HCC CHOH aquele ácido .. para um tem dois carbonos .. faz parte dos ácidos... do grupo funcional, esse formalismo, mas o que representa para o aluno quando você escreve HTC-COOH? para mim aquilo lá é um formalismo que ele vai ter que aprender, ele vai ser cobrado.
COORDENADOR - O Ensino Médio é o seguinte: ele começa desde as séries iniciais pelo concreto para levar à abstração. E muitas vezes, vamos dizer, você está numa oitava série, no colegial, você está numa situação que é do cotidiano dele, a questão do dinheiro que é toda hora a questão do cotidiano, aproximando da realidade. Quando você faz um trabalho concreto, eu, na minha concepção, é não manipular, mas aproximar de uma situação do cotidiano o conteúdo. Você facilita a aprendizagem. Agora a quinta mesmo é um conteúdo bem especificado. (Episódio da reunião de 25/10/2003).
Neste episódio os professores fazem uma tentativa de reflexão sobre sua prática e dois temas são levantados por eles: aqueles referentes ao ensino relacionado com o cotidiano dos alunos e ao uso da linguagem simbólica na Matemática. O coordenador afirma: Quando você faz um trabalho concreto, eu na minha concepção, é não manipular, mas aproximar de uma situação do cotidiano o conteúdo. Você facilita a aprendizagem. Algumas idéias de Vygotsky são especialmente dirigidas a aspectos específicos da educação na sala de aula e nos ajudaram nessa análise:
Durante o processo de educação escolar a criança parte de suas próprias generalizações e significados; na verdade ela não sai de seus conceitos mas, sim, entra num novo caminho acompanhada deles, entra no caminho da análise intelectual, da comparação, da unificação e do estabelecimento de relações lógicas. A criança raciocina, seguindo as explicações recebidas, e então reproduz operações lógicas, novas para ela, de transição de uma generalização para outras generalizações (VYGOTSKY, 2002, p. 175).
A função da escola é, pois, colocada de forma clara, com base no estabelecimento de relações lógicas e na busca de novas generalizações. De acordo com esse autor, o desenvolvimento dos processos que finalmente resultam na formação de conceitos começa na fase precoce da infância, mas as funções intelectuais que formam a base psicológica do processo, amadurecem e se configuram somente na puberdade. Elas resultam de uma atividade complexa, na qual todas as funções intelectuais básicas tomam parte. A solução dos problemas que enfrentamos é perseguida por meio do uso do signo, ou palavra, que controla o curso da atenção, da formação de imagens e outras operações mentais. Se o meio ambiente não apresenta tarefas ao adolescente e lhe faz novas exigências que estimulem o seu intelecto, o seu raciocínio não conseguirá atingir os estágios mais avançados. A formação dos conceitos é, portanto, função do crescimento social e cultural, afetando não apenas o conteúdo, mas o método de seu raciocínio (Vygotsky, 2003). Esse processo não exclui o cotidiano do aluno, mas é construído sobre suas bases. As generalizações e a formalização são produtos do raciocínio.
Produzindo significações
Na tentativa de abordar a significação em uma perspectiva histórico-cultural buscaremos apoio nas investigações de Vygotsky (1995:122) sobre o desenvolvimento das funções psíquicas superiores cuja formulação parte das definições de funções psíquicas primitivas que, de certa forma, são comparadas às superiores.
Chamamos primitivas as primeiras estruturas; trata-se de um todo psicológico natural, determinado fundamentalmente pelas peculiaridades biológicas da psique. As segundas estruturas, que nascem durante o processo de desenvolvimento cultural, as classificaremos como superiores...(...) Entre o estímulo ao qual se dirige a conduta e a reação do sujeito aparece um novo membro intermediário e toda a operação se constitui em um ato mediado.
O elemento mediador referido por Vygotsky (1995) é o signo. É graças a essa mediação que o homem domina os processos do próprio comportamento, aqueles que pertenciam ao domínio do biológico. Dessa forma ele modifica a estrutura natural e assume o comando de suas reações modificando a situação criada e, portanto, a sua própria sorte. O homem cria, assim, estímulos artificiais, que se diferenciam dos naturais tanto por sua origem como por sua função; foi o que Vygotsky (2002:83-85) denominou signos:
Chamamos signos aos estímulos-meios artificiais introduzidos pelo homem na situação psicológica, que cumprem a função de autoestimulação; (...) todo estímulo condicional criado pelo homem artificialmente e que se utiliza como meio para dominar a conduta própria ou alheia. (...) O homem introduz estímulos artificiais, confere significado à sua conduta e cria com ajuda dos signos, atuando desde fora, novas conexões no cérebro.
Partindo desta conceituação, Vygotsky (2002) introduziu em sua investigação um novo princípio regulador do comportamento, uma nova idéia sobre a determinação das reações humanas: o princípio da significação. Algumas concepções de signo trazem implicadas noções de representação, de semelhança e substituição, como estar no lugar de alguma coisa; entretanto, de acordo com Smolka (2004), a simples imagem ou mera substituição de uma coisa por outra não caracteriza o signo. Ele só se torna signo sob a condição de manifestar a relação àquilo que significa; além da representação é necessária uma re-flexão. O signo funciona como um elemento mediador, operador, conversor, das relações sociais em funções mentais. São essas as características que o diferenciam de um simples sinal.
Cabe então esclarecer a natureza do social na teoria vygotskyana, o que nos ajudará a compreender a idéia de abordagem histórico-cultural. Para tal esclarecimento contamos com a interlocução de Pino (2000) que coloca o condicionamento social como representando o papel da sociedade no desenvolvimento psíquico do homem, discutindo a natureza do social e como ele se torna constitutivo de um ser cultural. Segundo ele o termo social tem um caráter excessivamente genérico, como também o termo cultural, necessitando que sejam devidamente circunscritos no contexto teórico em que são utilizados.
O termo social diz respeito às formas de sociabilidade existente no mundo natural e não permite por si só explicar a sociabilidade humana. O desenvolvimento das funções psíquicas superiores não está apenas determinado socialmente, mas são sociais por seu conteúdo: o indivíduo é o social assimilado. Desta forma, de acordo com Vygotsky (1995), a psicologia não deve estudar o desenvolvimento individual no coletivo, mas a transformação das relações coletivas em características pessoais dos indivíduos.
Pino (2000:53) assume com Vygotsky que tudo o que é cultural é social, o que nos remete ao fato de que o campo do social é bem mais vasto que o campo da cultura, definida como um produto da atividade social do homem. O social é, de certa forma, um fenômeno mais antigo que a cultura.
O social é, ao mesmo tempo, condição e resultado do aparecimento da cultura. É condição porque sem essa sociabilidade natural a sociabilidade humana seria historicamente impossível e a emergência da cultura seria impensável. É porém resultado porque as formas humanas de sociabilidade são produções do homem, portanto obras culturais.
Por outro lado, a cultura é considerada como a totalidade das produções humanas (técnicas, artísticas, científicas, tradições, instituições e práticas sociais), tudo aquilo que é obra do homem e se contrapõe ao que é dado pela natureza. Como decorrência, a história se torna uma questão-chave na análise da natureza do social e do cultural na obra vygotskyana, entendida
de duas maneiras: em termos genéricos, significa uma abordagem dialética geral das coisas; em sentido restrito, significa a história humana. Distinção que ele completa com uma afirmação lapidar: a primeira história é dialética; a segunda é materialismo histórico (PINO 2000:48).
Com esta afirmação, o autor nos coloca a par das matrizes que lhe servem de referência o materialismo histórico e o materialismo dialético que são interligadas, pois cada uma abrange questões relativas à outra: o materialismo histórico não é o materialismo dialético, mas sua aplicação à história, ou seja, a ciência é histórica porque é o produto da atividade humana, não um dado puro da razão ou expressão da realidade natural (PINO, 2000).
Há que citar os diferentes objetos do materialismo histórico e do materialismo dialético: o do primeiro são os modos de produção e do segundo a história da produção do conhecimento; no materialismo dialético pode-se considerar, esquematicamente, que é o materialismo o que representa o aspecto da teoria, enquanto que a dialética representa o aspecto do método (Pino, 2000:50).
Estudar alguma coisa historicamente não significa estudar algum evento do passado, mas estudá-la no processo de mudança. Este é o requisito básico do método dialético.
Numa pesquisa, abranger o processo de desenvolvimento de uma determinada coisa, em todas as fases e mudanças do nascimento à morte significa, fundamentalmente, descobrir a natureza, sua essência, uma vez que é somente em movimento que um corpo mostra o que é. Assim, o estudo histórico do comportamento não é um aspecto auxiliar do estudo teórico, mas sua verdadeira base (VYGOTSKY, 2002:86).
Partimos da suposição que as concepções de Resolução de Problemas que vêem fundamentando as investigações e os documentos oficiais brasileiros nos orientariam na análise do discurso dos professores, mas percebemos que essas produções iam além do problema matemático. No processo de análise pudemos perceber mudanças nas concepções dos professores sobre a Resolução de Problemas, o que nos levou a inferir sobre a importância de um grupo para reflexão sobre as práticas pedagógicas e o conseqüente processo de constituição profissional dos professores participantes. Os coordenadores, que eram também professores de Matemática, procuravam incentivar debates fundamentados nas recomendações dos PCNs4, como é o caso da recomendação que tem como base os estudos de Schoenfeld (1985):
A Resolução de Problemas, na perspectiva indicada pelos educadores matemáticos, possibilita aos alunos mobilizar conhecimentos e desenvolver a capacidade para gerenciar as informações que estão a seu alcance. Assim, os alunos terão oportunidade de ampliar seus conhecimentos acerca dos conceitos e procedimentos matemáticos bem como de ampliar a visão que têm dos problemas, da Matemática, do mundo em geral e desenvolver sua autoconfiança (BRASIL, 1998).
Desenvolvendo seus estudos nesta perspectiva, Vygotsky (1995) inclui em um conceito geral de desenvolvimento das funções psíquicas superiores, dois grupos de fenômenos. O primeiro é constituído pelos processos de domínio dos meios externos de desenvolvimento cultural e do pensamento: a linguagem, a escrita, o cálculo, o desenho. O segundo grupo é aquele dos processos de desenvolvimento das funções psíquicas superiores especiais que, na psicologia tradicional se denominam: atenção voluntária, memória lógica, formação de conceitos, etc. Enfim, o que fundamentalmente distingue as funções psíquicas superiores é o fato de se constituírem em uma outra classe de atividades do sujeito, inerente apenas ao ser humano. Pressupõe uma interação mediada entre o homem e a natureza, provocando uma atividade autêntica, não provocada somente por estímulos naturais.
Podemos, portanto, usar o termo função psicológica superior ou comportamento superior, com referência à combinação entre instrumento e signo na atividade psicológica. O signo é visto como instrumento psicológico que se produz na relação em determinadas condições materiais de produção, afetam e transformam os organismos, que passam a funcionar na esfera do simbólico e não mais apenas na esfera biológica.
A questão da significação teve destaque nas investigações de Vygotsky (1995) e a característica do signo como instrumento mediador e constituidor da atividade mental pode ser considerado como o aspecto original de sua contribuição para os estudos sobre o desenvolvimento humano. Para ele um signo é um meio para influenciar os outros e a si próprio, em grande parte dos casos, nessa ordem
Suas idéias produzem um deslocamento conceitual, viabilizando novos modos de compreensão da significação como atividade humana e prática social:
Nesse quadro conceitual, opera-se uma passagem da representação à significação, o que implica que a formação de imagens é afetada e permeada por signos e sentidos socialmente construídos, ou seja, que aquilo que se produziu nas relações, se estabilizou e foi acordado entre as pessoas, isto é, deixou marcas que podem persistir e perdurar, de alguma forma, não só nos indivíduos, mas também nas relações com e entre outras pessoas (SMOLKA, 2004:41).
A significação, portanto, implica, mas não se restringe à representação. Esta, como possibilidade de formação de imagens, idéias, pensamentos, funciona em um nível individual, embora se produza entre pessoas, com a mediação de signos. Os sentidos das polêmicas provocadas quando tentamos decifrar os mistérios da significação podem se configurar melhor na medida que conhecemos a história do pensamento e alguns aspectos da (língua)gem em funcionamento.
Para nos tornarmos conscientes de uma operação ela deve ser recriada na imaginação, de uma forma que possa ser expressa, transferida do plano da ação para o plano da linguagem, que pode ser falada, escrita, simbólica, etc. Todas as esferas da atividade humana estão relacionadas com a linguagem, efetuada em forma de enunciados orais e escritos.
No episódio seguinte podemos perceber a natureza dialógica do conhecimento reflexivo: ao tentar se aproximar do objeto complexo que são as relações do conhecimento matemático com as condições reais da sala de aula e dos alunos, novas significações se formaram em um contexto mais amplo. A professora Tânia fez uma observação sobre o vídeo de Resolução de Problemas que foi apresentado nesta reunião em que ela comenta as diferenças entre a sala de aula apresentada no vídeo e as salas de aula nas quais ela trabalha, ressaltando detalhes das condições físicas da classe e atitude dos alunos. O professor Mário fez uma reflexão sobre a realidade do aluno, que muitas vezes é muito diferente daquela dos exemplos de sala de aula e dos livros didáticos:
MARIO (...) Esses livros didáticos que nós temos, eu estive analisando todos eles, realmente têm equívocos, mas eu acho que de acordo com a nossa realidade de prefeitura, onde o aluno fala: eu vim aqui para comer, eu quero comer, professor; eu estou com fome, eu preciso alimentar meu corpo, antes de aprender alguma coisa. (...) Um grupo, uma comunidade no nordeste de Angola, que foi colonizada por portugueses, tanto é que eles falam o português, e as crianças, elas chegam próximas aos adultos para buscar a sabedoria dos adultos. E o interessante é que o adulto vai falando e vai transcrevendo na areia aquilo que ele está falando, se manifestando. Então a geometria vai nascendo justamente dessa construção: fala e ao vivo, mas é um dado cultural, da cultura deles, nasceu com eles, e eles tem essa cultura milenar, porque vai passando de pai para filho. O nosso problema muito sério é a cultura do povo brasileiro, nós não temos uma cultura sólida, nós não temos uma cultura que nasceu de nós, é uma coisa copiada, não é verdade? (...)
COORDENADOR Então na hora que a gente propõe, e essa proposta, como você está falando, vamos montar um probleminha: ô professor, mas isso? então o aluno já se sente desgastado...
MÁRIO ...eu peguei uma aluna lendo uma revista, aí eu falei: hoje a aula vai ser sobre esta revista dela; menina, que revista você está lendo? Ela teve um trabalhão para esconder. Eu não tenho tempo de ler revista e eu queria saber que revista você está lendo: é sobre fotonovela, e começou a contar os casos. Eu deixei as meninas falarem sobre esta revista. Foi uma hora que começou a atrair os meninos: é para meninas, os meninos não lêem. Eu levantei um problema em cima da revista: o que tem a ver com essa revista, justamente a leitura, mas eles lêem essa revista, eles sabiam de tudo: o artista tal, você acha que se eu colocar aquele problema na lousa... Então a gente observa as realidades dos alunos, o que a televisão está levando para nós sem permissão dentro de casa, e o que fazer em sala de aula, então o que tem que fazer? A escola tem que dar um basta, a escola está muito distanciada do hoje, por mais que você leve a calculadora, por mais que você leve um vídeo, essa leitura é do século XVIII, e nós não podemos levar essa leitura do século XVIII para a leitura do século XXI. A colega [professora Tânia] falou: puxa, eu tenho uma sala de 50 alunos, como é que eu posso trabalhar com esses alunos?
PESQUISADORA Eu pensei nisso também, no que a Tânia está falando.
ALICE É porque realmente a gente tem que questionar tudo isso: são vários questionamentos que a gente vem fazendo. Essa aprendizagem da Matemática ela é ótima, é fiel, é tradicional, são conhecimentos muitos antigos que nós estamos tentando trazer para o hoje. Agora, como nós estamos tentando trazer para o hoje? Nós estamos um pouco arcaicos.
VANDER Você está pegando num problema muito sério, para mim é o primordial. Acho que escola aberta para todo mundo é muito ruim, só que para ficar lá ele tem que ter responsabilidade. O aluno, seguro... tudo quanto é tipo de aluno ele tem o direito, ele pode desrespeitar todos os colegas, se tiver 50 na sala, 51, pode desrespeitar os 50, o direito dele na sala é sagrado; ou vai mudar isso ou não adianta discutir o que a gente ta falando aqui. (Episódio da reunião de 03/04/2004).
O professor Mário se refere aos comentários da professora com as palavras: A colega falou: puxa, eu tenho uma sala de 50 alunos, como é que eu posso trabalhar com esses alunos? Dessa forma ele expressa uma compreensão responsiva ao enunciado da colega. Problematiza questões que vão muito além daquelas dos problemas matemáticos que costumamos apresentar aos nossos alunos. Parece que os professores nesse episódio estavam querendo dizer que a nossa realidade é tão complexa que os problemas que apresentamos são ingênuos e insignificantes diante dessa complexidade. Quando o professor coordenador afirma: vamos montar um probleminha: ô professor, mas isso? então o aluno já se sente desgastado... ele parece refletir sobre essa realidade.
Ao problematizar a vida além da Escola os professores se referiram basicamente à função da Escola na sociedade, constatando que ela não tem conseguido que os alunos participem de maneira adequada da vida cultural da comunidade. Deixaram evidente a lacuna existente entre suas utopias e as limitações impostas pela realidade social dos alunos. Foi ressaltada a necessidade de adotarem uma postura crítica diante dos dados dos problemas e suas soluções, e de oferecer aos alunos oportunidades para discutir hipóteses e conclusões. Ficou evidente a complexidade do trabalho docente e as precárias condições de trabalho que dificultam a participação do professor nas decisões de sua classe profissional e até mesmo de informações que lhes pudessem proporcionar uma cultura geral, condição necessária para uma comunicação eficiente com seus alunos. Evidenciaram algumas relações entre problemas matemáticos e problemas da vida real e as dificuldades de encontrarem dados reais para problemas matemáticos, o que nos leva a inferir que Matemática e vida real parecem se encontrar em campos distantes e incomunicáveis.
Icitados pelas discussões sobre resolução de problemas no ensino da Matemática, os professores, nas reuniões pedagógicas, problematizaram suas condições concretas de vida. Nas relações que acontecem no cotidiano das pessoas e nas práticas sociais, as significações vão se produzindo coletivamente, a partir de múltiplos sentidos já estabilizados. É nesse jogo que as ideologias se produzem, como conjunto de signos e valores. Deste modo, deixa de ser pertinente (ou perde o sentido) falar em sentido único, literal, verdadeiro. Não há sentido imanente. Os sentidos podem sempre ser vários, mas dadas certas condições de produção, não podem ser quaisquer uns (SMOLKA, 2004:45).
O caráter responsivo da enunciação
É Bakhtin (1981, 2000, 2004) que complementa a teoria vygotskyana no que se refere à relevância da significação, analisando as relações dos signos com o psiquismo e a ideologia, destacando que o signo é o social que se infiltra no organismo do indivíduo para realizar sua natureza semiótica. Desta maneira, existe entre o psiquismo e a ideologia uma interação dialética indissolúvel: o psiquismo se oblitera, se destrói para se tornar ideologia e vice-versa (BAKHTIN, 2004:65, grifo do autor), ou seja, a fala, a enunciação, está sempre carregada de um conteúdo ideológico.
Para esclarecer o sentido no qual utilizamos o termo ideológico vamos nos remetermos a Jiménez (2002:76-77) que o toma no sentido gramsciano,
como a própria concepção de mundo que cada um tem, o que faz com que pertençamos a um determinado grupo social no qual partilhamos um mesmo modo de pensar e de agir. [...] todo homem desenvolve uma atividade intelectual que faz com que participe de uma determinada concepção de mundo, e, contribua assim para manter ou para modificar essa concepção de mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar. Aquela concepção de mundo revela-se implicitamente em todas as manifestações de vida individuais e coletivas.
Na relação dialógica estabelecida entre pares ou pessoas que perseguem em princípio os mesmos objetivos, a re-significação propicia que um significado se modifique, sendo produzidos novos sentidos. Dessa forma sentidos e significados mudam e se misturam nas relações discursivas. As buscas de sentido se realizam nas práticas sociais e assim se transformam historicamente as relações do homem consigo mesmo, com o outro e com o conhecimento.
O professor Paulo mostra o conflito que enfrenta quando, em uma das reuniões, o grupo problematizava a função da escola de preparar o aluno para a vida:
Quando colocaram esta progressão continuada5, eles desvincularam o conteúdo e colocaram aquela coisa que eu acho que é muito errada que está na Constituição, preparar o indivíduo para a vida, exercer o trabalho, a cidadania e viver em grupo; aquilo lá tirou o conteúdo, você não precisa mais, e nós batemos em conteúdo, todo professor bate em conteúdo, é a nossa função, só que a máscara de tudo tirou isso aí, não fala de conteúdo, fala de preparar para vida e para o trabalho, mas como preparar para vida e para o trabalho se o cara não sabe? Saber ler e escrever, é tudo cobrado na vida dele (professor Paulo, episódio da reunião de 03/04/2004)
O professor Paulo expressa a sua tentativa de produzir novas significações que possam se apoiar em suas concepções antigas. Quando afirma: Como preparar para a vida e para o trabalho se o cara não sabe, parece tentar encontrar um sentido capaz de satisfazê-lo. A professora Bárbara também torna explícito o seu conflito ao tentar encontrar soluções juntamente com o grupo de professores para o dilema que enfrentam ao tentar conciliar suas concepções sobre as funções da escola e as condições reais de trabalho:
Eu acho que a gente fica entre duas situações: a gente tem o conteúdo na cabeça martelando de um lado, tem isso que você falou, as atitudes, a preparação para o trabalho, a preparação para a vida. Do outro... e nós não temos o tempo suficiente para desenvolver isso, para, chegar em casa e para dar uma aula de 50 min gastar três horas, para inventar uma coisa, e nós não encontramos isso pronto (professora Bárbara, episódio da reunião de 03/04/2004).
As palavras constituem a imaginação e vão configurando os conceitos. A forma lingüística é um signo mutável na qual a entonação expressiva, a modalidade apreciativa sem a qual não haveria enunciação, o conteúdo ideológico, o relacionamento com uma situação social determinada, afetam a significação (BAKHTIN 2004:15).
Assim, ele define a relação dialógica como dois tipos de produções verbais, dois enunciados confrontados um com o outro, que entabulam uma relação de sentido.
É uma relação marcada por uma profunda originalidade e que não pode ser resumida a uma relação de ordem lógica, lingüística, psicológica ou mecânica, ou ainda a uma relação de ordem natural. Estamos perante uma relação específica de sentido cujos elementos constitutivos só podem ser enunciados completos (ou considerados completos, ou ainda potencialmente completos) por trás dos quais está (e pelos quais se expressa) um sujeito real ou potencial, o autor do determinado enunciado (BAKHTIN, 2000:353, grifos do autor).
De acordo com este autor só a dialética pode resolver a contradição aparente entre o signo que é, por natureza, vivo e móvel e a unicidade da significação. A palavra, signo ideológico, é capaz de registrar as fases transitórias das mudanças sociais e por esse motivo pode ser considerada como um material privilegiado na comunicação.
O professor Vander procura entender as relações entre a palavra e seu significado e compartilha com o grupo uma reflexão sobre as dificuldades dos alunos ao resolver problemas matemáticos:
Bom, a primeira coisa que o aluno faz num probleminha é quanto ao conteúdo, que tipo de conta ele tem que fazer, essa é a primeira coisa, ele não lê o problema. Tem preguiça visual. O principal problema antes de fazer é saber o significado do que está escrito, das palavras, de tudo. Eu acho que neste aspecto a escola está deixando um pouco a desejar (professor Vander, episódio da reunião de 03/04/2004).
O professor, nesse episódio, problematiza a necessidade de serem criadas, em sala de aula, oportunidades para os alunos produzirem significações em ambientes que favoreçam a troca de idéias e os debates sobre as situações-problema.
De acordo com Bakhtin (2000:342) dois fatores determinam um texto e o torna um enunciado: seu projeto (a intenção) e a execução desse projeto. A comunicação dialógica efetuada mediante enunciados é irreproduzível, não pode ser repetida; sempre teremos um novo enunciado, devido à sua individualidade. A significação é, portanto, característica da condição humana, resultante da dinâmica das relações. As relações de sentido entre enunciados distintos são de ordem dialógica ou têm uma matriz dialógica.
As relações de sentido, dentro de um enunciado (ainda que fosse potencialmente infinita, como no sistema da ciência, por exemplo), são de ordem factual-lógica (no sentido lato do termo), ao passo que as relações do sentido entre enunciados distintos são de ordem dialógica (ou, pelo menos, têm um matiz dialógico). O sentido se distribui entre as diversas vozes.
Estas considerações ressaltam a importância da individualidade e destacam o fato de que os enunciados não são indiferentes uns aos outros, mas refletem-se mutuamente, guardam lembranças de outros enunciados próprios e dos outros. Sendo assim, eles são uma resposta ao que já foi dito sobre o mesmo objeto; essas respostas poderão ser reveladas na expressividade. Nosso pensamento nasce e forma-se em interação com o pensamento dos outros e a formação de sentido se realiza nessa relação.
O fato de ser ouvido, por si só, estabelece uma relação dialógica. A palavra quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por sua vez, responder à resposta, e assim ad infinitum. Ela entra num diálogo em que o sentido não tem fim (entretanto ele pode ser fisicamente interrompido por qualquer um dos participantes) (BAKHTIN, 2000:357).
Como ressalta Jiménez (2002:63), a alternância dos enunciados proferidos pelos sujeitos que falam indica as fronteiras físicas de cada enunciado. Nessa interação, cada locutor, a cada enunciado que postula, está preparando uma resposta. A resposta esperada é uma concordância, uma adesão, uma objeção... Por outro lado, o ouvinte adota simultaneamente, também, uma atitude que, na perspectiva bakhtiniana, é denominada responsiva ativa, ou seja, de concordar, discordar, adaptar ou aprontar.
A relevância atribuída por esse autor [Bakhtin] às duas fases de um enunciado a primeira, a seleção do conteúdo e a segunda, a necessidade de expressividade do locutor/ouvinte ante o objeto de seu enunciado , sugerem-nos focalizar as categorias para a análise nos conteúdos temáticos tratados/analisados/refletidos e na maneira como são proferidos, determinando concordância, adesão, persuasão ou objeção, discordância ou confronto/conflito.
No episódio que se segue podemos perceber a atitude responsiva ativa dos interlocutores. Muitas vezes não é fácil para o professor despertar nos alunos a necessidade do conhecimento. A professora Junia compara a rapidez da Internet com os métodos arcaicos usados nas relações pedagógicas e conta com a concordância, a adesão dos outros participantes do diálogo.
JUNIA Sabe o que eu tenho percebido, tudo rápido, Internet. Eles não têm mais estudado.
COORDENADORA Mas Junia, eles não estão captando as informações que estão vindo não, eles estão captando só aquilo que realmente interessa.
SUELI Só aquilo que interessa.
JUNIA E aí o problema é de uma outra área. Não está com a mente aberta ainda para entender.
COORDENADORA É, muita coisa eles não estão recebendo.
JUNIA Não estão. Não estão. (Episódio da reunião de 23/08/2003).
A coordenadora, quando argumenta que eles estão captando somente aquilo que realmente interessa, conta com a concordância da professora Sueli. Nota-se que os dois enunciados estão unidos por uma relação dialógica de concordância e o questionamento sobre a questão das informações que o aluno capta em sala de aula e a afirmação da professora Junia, quando diz que o problema é de uma outra área, parecem querer dizer que essa é uma questão que eles, como professores, não estão aptos a resolver. Ela se refere também à mente aberta para entender, que poderia estar relacionada com a compreensão, como ela é entendida por Bakhtin (2004, p.132): Cada um dos elementos significativos isoláveis de uma enunciação e a enunciação toda são transferidos nas nossas mentes para um outro contexto, ativo e responsivo. Essa transferência poderá não ocorrer em determinadas condições, e o discurso se perde, não exercendo suas funções no processo de compreensão.
Essa busca de acordos não implica em fusão, em redução de múltiplos significados a um só ou fusão de um sujeito em outro. O que Bakhtin (2000:102) está ressaltando é a importância da exploração da exotopia e do excedente de visão de cada um, a subjetividade, ou seja,
é preferível que ele [o outro] permaneça fora de mim, pois é a partir da sua posição que pode ver e saber o que, a partir da minha posição, não posso ver nem saber, sendo assim que ele poderá enriquecer o acontecimento da minha vida.
Apesar de, como destaca Smolka (2004), a questão da diferenciação entre sentido e significado ser arcaica, aquela feita por Vygotsky (2002) pode nos ajudar a entender também essa diferença nas relações dialógicas. Ele considera o sentido da palavra como os sucessos psicológicos evocados pelo sujeitos graças a ela e o significado só uma dessas zonas, a mais estável, mais dicionarizada.
Na relação dialógica estabelecida entre pares ou pessoas que perseguem em princípio os mesmos objetivos, a significação permite que um significado se modifique, sendo impressos novos sentidos. Dessa forma sentidos e significados mudam e se misturam nas relações discursivas. As buscas de sentido se realizam nas práticas sociais e transformam historicamente as relações do homem consigo mesmo, com o outro e com o conhecimento.
De acordo com Bakhtin (2000:279) todas as esferas da atividade humana estão relacionadas com a utilização da língua, efetuada em forma de enunciados (orais e escritos); cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, o que ele denomina gêneros do discurso.
Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida. A língua penetra na vida dos enunciados concretos que a realizam e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua (ibidem:282).
Como o signo e a enunciação são de natureza social, este autor defende que a linguagem determina a consciência e a atividade mental e estuda as relações entre linguagem e ideologia. Defende que o objeto verdadeiro da pesquisa deve ser a interação dinâmica entre o discurso a transmitir e aquele que serve para transmiti-lo. Essa dinâmica reflete a inter-relação social dos indivíduos na comunicação ideológica verbal, de modo que as formas do discurso são determinadas pelas condições sociais e econômicas da época.
Em qualquer enunciado podemos captar e sentir o intuito discursivo ou o querer dizer do locutor, que determina a escolha do objeto.
O intuito, o elemento subjetivo do enunciado, entra em combinação com o objeto do sentido objetivo para formar uma unidade indissolúvel, que ele limita, vincula à situação concreta (única) da comunicação verbal, marcada pelas circunstâncias individuais, pelos parceiros individualizados e suas intervenções anteriores: seus enunciados (BAKHTIN 2000:300).
O intuito vai também determinar a escolha do gênero do discurso, que é uma forma de estruturação do mesmo. Analisando vozes que interagem nos diálogos, Mortimer e Machado (2001) caracterizaram os padrões discursivos presentes em uma sala de aula de Ciências, destacando dois tipos de discurso: o discurso persuasivo, com a função de gerar novos significados e o discurso de autoridade, cuja função é consolidar ou reforçar significados já tidos como compartilhados por todos.
O discurso internamente persuasivo procura as contrapalavras, ele é metade nosso e metade do outro. A estrutura semântica de um discurso internamente persuasivo não é finita, é aberta. (...) Esse discurso é capaz de revelar até mesmo novas maneiras de significar (BAKHTIN, 1981:346).
Uma enunciação envolve não apenas a voz que a produz, mas as vozes a que ela se dirige. Por outro lado, a noção de voz, segundo Bakhtin (2004:131), envolve a perspectiva do falante, que está relacionada à sua visão de mundo, ao seu horizonte conceitual, ao seu lugar social. Os elementos significativos de uma enunciação são, então, transferidos como já destacado, a um contexto ativo e responsivo, pois qualquer tipo de compreensão
deve conter já o germe de uma resposta. [...] Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão.
A significação, portanto não pertence a uma palavra, mas se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva, é o efeito da interação do locutor e do receptor. A compreensão responsiva é a fase inicial e preparatória para uma resposta, a
atitude do ouvinte está em elaboração constante durante todo o processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor. A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa atividade seja muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se locutor (BAKHTIN 2000:290).
Este autor conclui que, em cada um dos pontos do diálogo que se desenrola, existe uma multiplicidade ilimitada de sentidos esquecidos que serão, em algum momento, rememorados e renascerão em um contexto novo. Não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu renascimento (BAKHTIN 2000:414).
Sistematizando uma concepção de problematização
Os professores revelavam em seus enunciados nas reuniões que rememoravam, faziam renascer, elaboravam novos sentidos:
MARINA A porcentagem de erros e acertos nas escolas. Mas eu... Matemática um pouco menos.
MÁRCIA Na minha escola também eu fiquei assim... Isso acontece.
CÉLIA Eles não sabem português.
BÁRBARA Eles não sabem interpretação. A última coisa que os alunos... é a interpretação. Na prova de português eles foram bem; então eles têm interpretação.
COORDENADOR Você tem avaliação, diagnóstico, mas a que você atribui a situação? (Episódio da reunião de 20/11/2003).
O questionamento sobre os resultados de uma avaliação em larga escala, promovida pela Secretaria Municipal de Educação, suscitou uma apreciação crítica por parte dos professores a respeito dos motivos que levaram os alunos a apresentar piores resultados em Matemática do que nas demais disciplinas. A professora Célia apresenta o argumento que eles não sabem português, querendo com isso dizer que, como a prova era constituída de problemas e situações contextualizadas, o aluno provavelmente teria encontrado dificuldade em interpretar o texto e estabelecer as relações pertinentes. A professora Bárbara parecia pensar em voz alta enquanto tentava buscar o sentido que se estabelecia na relação dialógica. Essa busca a levou a acreditar que, como eles foram bem em Português, provavelmente a conclusão não seria tão simples de ser formulada.
Sendo assim, durante o processo de análise foi se explicitando nossa concepção de problematização.
Problematizar, na nossa concepção, é questionar, mas é mais que isso. É ir mais fundo, questionar o que é hegemônico, desestabilizar o que está estabelecido. É refletir sobre, mas não apenas isso; pressupõe a ação, a quebra dos elementos de significação, e busca formar novos sentidos, mudar a configuração da rede de significações. O ambiente propício para a problematização é o diálogo, a interação, a formação conjunta de significações (COELHO, 2005:80).
Esta concepção de problematização tem uma referência importante na teoria bakhtiniana, mas foi constituída, principalmente, a partir das idéias sobre significação defendidas por Smolka (2004:35). Esta autora, tendo presentes os problemas seculares da teoria do conhecimento, que absorvem os homens e apaixonam pensadores, filósofos, poetas e cientistas na compreensão das relações entre mente, pensamento, linguagem e mundo; afirma que é impossível ao homem não significar, visto que a significação faz parte da atividade humana. Ele busca e atribui sentidos, procura compreender o mundo em que vive e os outros homens com os quais convive, procurando entender a si mesmo e aos fatos que fazem parte da sua história.
Considerações finais
Os episódios das reuniões sobre Resolução de Problemas em aulas de Matemática não podem ser pensados separadamente uns dos outros, pois é da articulação dos mesmos que a história se construiu e que as diferentes pessoas se constituíram e se desenvolveram na situação.
As reuniões pedagógicas analisadas contaram com algumas características que nos pareceram decisivas para instigar a problematização sobre a Matemática, seu ensino e suas relações com a vida: elas eram coordenadas também por professores de Matemática, que apesar de terem o objetivo de proporcionar aos demais professores oportunidades de ressignificar a sua prática, não levaram respostas prontas nem tentaram impor idéias veiculadas por instâncias superiores. Pelo contrário, procuravam as respostas juntamente com os professores, valorizando e instigando suas idéias. Podemos reconhecer como central o papel do outro na produção das significações que se realizam em um processo contínuo de construção. As contradições e o caráter inconclusivo dos debates se constituem em parte integrante desse processo.
Os aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos que se concretizam na vida das pessoas, estão presentes em todos os espaços de sentido e significação. Existem múltiplas histórias, múltiplas vidas e também muitas contradições que se verificam nos processos dialógicos. A matriz sócio-histórica se constitui pela polissemia, pela heterogeneidade e pela complexidade, abrindo múltiplas significações e rumos diversos. As pessoas estão sendo continuamente constituídas na dinâmica das relações e do desenvolvimento dos processos.
Nosso trabalho tinha como objetivo investigar as significações produzidas pelos professores sobre a Resolução de Problemas como prática pedagógica, mas a problematização que se realizou foi além do problema matemático e produziu significações sobre as relações de ensino e a vida fora da Escola. Os professores problematizaram as funções da Escola ao refletirem sobre o fato de os alunos não saberem pensar, não conseguirem interpretar os textos dos problemas e não conseguirem bons resultados em provas elaboradas em moldes diferentes dos habituais ou por outras pessoas. Embora nenhum deles tenha tornado explícita a relação entre a Resolução de Problemas como ponto de partida para o ensino da Matemática e a capacidade dos alunos de desenvolver o pensamento criativo, a interpretação e a argumentação, questionaram as praticas pedagógicas que podem ser consideradas hegemônicas. A discussão sobre resolução de problemas se mostrou capaz de gerar problematizações mais amplas, que extrapolam o próprio problema.
Referências
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4. BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. (1998). Parâmetros Curriculares Nacionais PCNs (3o e 4o ciclos do Ensino Fundamental). Brasília, SEMTEC/MEC. [ Links ]
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LOS AUTORES
COELHO, Maria Aparecida Vilela Mendonça Pinto Grado académico: maestria Universidade Federal de São Carlos. SP Brasil Grupo de pesquisa PRAPEM (Prática Pedagógica em Matemática) Linea de investigación: Educação Matemática: Prática pedagógica em Matemática cidapcoelho@uol.com.br
CARVALHO, Dione Lucchesi de Grado académico: doctorado Universidade Estadual de Campinas. SP Brasil Grupo de pesquisa PRAPEM (Prática Pedagógica em Matemática) Linea de investigación: Educação Matemática:prática pedagógica em Matemática dione_paulo@uol.com.br