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Cuadernos del Cendes

versión impresa ISSN 1012-2508

CDC vol.30 no.82 Caracas abr. 2013

 

Segurança e saúde dos trabalhadores na indústria do alumínio no estado do Pará, Brasil 

Laura Soares Martins Nogueira* Rosa Elizabrth Acevedo Marin**

* Doutora em Desenvolvimento Socioambiental, Universidade Federal do Pará. Tecnologista Pleno da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho. E-mail: laura.nogueira@fundacentro.gov.br.

** Doutora em História e Civilização, École des Hautes Études en Sciences Sociales. Professora Associada III da Universidade Federal do Pará. E-mail: ream30@hotmail.com.

Resumo

A reestruturação produtiva é uma das mudanças empreendidas pela indústria do alumínio no Pará, trazendo novas tecnologias e maior produção; bem como, redução dos postos de trabalho, terceirização e alterações nas condições de trabalho. A partir de denúncias sobre adoecimentos vivenciados por trabalhadores deste setor produtivo, este trabalho indaga como ocorre a gestão da segurança/saúde de trabalhadores face à reestruturação produtiva enfrentada na produção de alumínio primário e seu impacto sobre a subjetividade dos empregados. Pautado na Psicodinâmica do Trabalho, o estudo optou pela abordagem qualitativa em pesquisa o que permitiu a realização de 44 entrevistas com trabalhadores, sindicalistas, técnicos e gestores da empresa estudada. Observou-se o sofrimento dos acidentados/adoecidos em função de vidas interrompidas e de sentimentos de inutilidade/abandono, associados à organização do trabalho e ao modo como ocorre a gestão da segurança/saúde dos trabalhadores.

Palavras chave Segurança e Saúde do Trabalhador / Reestruturação Produtiva / Indústria do Alumínio 

Abstract

Productive restructuring process is one of the changes undertaken by the aluminum industry in Pará, bringing new technologies and increased production; as well as reduction of jobs, outsourcing and changes in working conditions. From denunciations about illnesses experienced by workers of this productive sector, this paper asks how management does about safety/health of workers relating to productive restructuring faced in production of primary aluminum and its impact on the subjectivity of workers. Guided by the Psychodynamics of Work, the study opted for a qualitative research approach which allowed conducting 44 interviews with workers, trade unionists, technicians and managers of the company under study. It was observed the suffering of the injured/diseased due to disrupted lives and feelings of worthlessness/abandonment, associated with work organization and how is the management of workers’ safety/health. 

Key words Security and Workers’ Health / Productive Restructuring / Aluminum Industry 

Recibido:   octubre 2012  ACEPTADO:  diciembre 2012 

Introdução

A partir da metade do século XX, observa-se na análise do processo de industrialização na Amazônia brasileira a ampliação do setor de extração e transformação mineral. Os grandes projetos minero-metalúrgicos que lá se instalaram no final dos anos setenta, fundamentaram-se no ideário de modernização e crescimento econômico para uma região historicamente «esquecida» pelo Estado, assim como se justificaram pelo atendimento à demanda global por mercadorias de origem mineral.

Planos de Desenvolvimento para o crescimento econômico do país, especialmente durante o regime militar no Brasil, propugnavam políticas de incentivo à instalação de grandes empresas mineradoras. Salientamos no governo do General Ernesto Geisel, o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), em que a Amazônia foi pensada como uma «fronteira de recursos», portanto, um grande bem nacional. O Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (Poloamazônia), por sua vez, objetivava o desenvolvimento de infra-estrutura destinada a criar um clima de investimentos mais favorável à iniciativa privada (Mahar, 1978).

Este contexto político impulsionou a implantação da cadeia produtiva do alumínio, sediada no Estado do Pará, associada ainda aos interesses da indústria global do alumínio. Ciccantell (2005) mostra que essa indústria iniciou a sua internacionalização no final do século XIX, ao enfrentar dificuldades quanto ao acesso aos insumos essenciais à produção (bauxita e eletricidade), uma vez que os recursos disponíveis nas nações centrais estavam se esgotando, e havia necessidade de buscar matérias-primas, competindo por novos mercados em outros países e regiões do mundo. Assim, o acesso aos recursos ocorreria pela aquisição de empresas produtoras desses insumos ou de sua instalação em locais não desenvolvidos, com depósitos de bauxita, e grande potencial hidrelétrico.

Apesar da indústria não ser um setor forte na região norte brasileira, o Estado do Pará se constituiu em território privilegiado para sediar a cadeia produtiva do alumínio por possuir as maiores reservas de bauxita; por abrigar a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, fornecedora de energia elétrica de baixo custo; bem como, garantir mão-de-obra barata, principais componentes necessários ao processo de industrialização do alumínio. Ao longo do tempo, essa indústria enfrentou mudanças, fruto da reestruturação produtiva que se por um lado resultaram em melhorias tecnológicas e aumento da produção; por outro, diminuíram os postos de trabalho, intensificaram a terceirização no setor, alterando sensivelmente as condições e relações de trabalho.

Neste contexto, o estudo em questão se volta para a análise de um aspecto social desse processo desenvolvimentista, qual seja o da segurança e da saúde dos trabalhadores na indústria do alumínio no Estado do Pará. Parte-se de uma questão paradoxal, uma empresa produtora de alumínio, ganhadora de diversos prêmios e detentora de inúmeras certificações de qualidade, –inclusive referente à OHSAS 180011– é a mesma empresa que apresenta um processo produtivo denunciado pelos trabalhadores como adoecedor. Fato que se expressa nos discursos dissonantes da empresa e dos trabalhadores sobre os processos de adoecimento e acidentamento decorridos da produção. De um lado, a empresa referindo o Sistema de Gestão da Segurança e Saúde Ocupacional sob o pilar da Qualidade Total, que lhe permite declarar, mesmo diante de um processo produtivo com inúmeros riscos laborais, a ausência de registros de doenças ocupacionais e baixas taxas de lesões no período de 2005-2007 (Albras, 2008). Do outro lado, os trabalhadores denunciam à Comissão Intersetorial de Saúde do Trabalhador do município de Belém (CIST-Bel)2 os processos de adoecimento que associam com sua atividade de trabalho, além de recorrer à Associação em Defesa dos Reclamantes e Vitimados por Doença do Trabalho na Cadeia de Produção do Alumínio (ADRVDT-CPA) em busca de apoio para provar que a doença manifesta é decorrente da atividade profissional desenvolvida, o que não é reconhecido pela empresa e muitas das vezes pelo próprio Estado. Não são raros os relatos dos trabalhadores que enfatizam a não concessão de benefícios acidentários pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A pesquisa de Guinalz (2008) identifica tal quadro ao entrevistar 45 trabalhadores vítimas de doenças ocupacionais resultantes da atividade profissional exercida na empresa de alumínio, o que reforça a denúncia dos trabalhadores.

Quanto à segurança e saúde do trabalhador, a cultura organizacional e seus valores reconstruídos no bojo da reestruturação produtiva e do modelo toyotista apontam para a possibilidade de intensificação do prisma individualizador no campo da segurança e saúde, onde tradicionalmente o acidente de trabalho é visto como erro, culpa do trabalhador, conformando a própria subjetividade operária.

A questão norteadora dessa investigação busca responder: em que medida a Gestão da Segurança e Saúde Ocupacional, calcada na Gestão Qualidade Total aponta para o inverso do que se propõe, ou seja, o bem-estar no trabalho? Desta forma, interpreta como ocorre a gestão da segurança e saúde dos trabalhadores à luz das transformações decorrentes da reestruturação produtiva na produção do alumínio no Pará a partir de processos de subjetivação dos trabalhadores, pois entendendo-se como a organização do trabalho se configura, pode-se compreender a relação –prazer/saúde ou sofrimento/adoecimento– que o trabalhador estabelece com o seu próprio trabalho.

O Campo de Estudos das Relações Saúde-Doença e Trabalho

Na atualidade, três paradigmas –Medicina do Trabalho, Saúde Ocupacional e Saúde do Trabalhador– concebem as relações saúde-doença e trabalho por meio de conceitualizações e metodologias de análise distintas remetendo a práticas de intervenção diferenciadas no mundo do trabalho.

A Revolução Industrial leva a reflexão sobre a relação saúde-doença e trabalho, pois nela se evidencia a emergência de novas formas de divisão social do trabalho. Inovações tecnológicas, especialmente com a introdução da máquina a vapor e as condições desumanas de trabalho enfrentadas pelos trabalhadores, agora, homens livres, impulsionam a construção do primeiro paradigma sobre saúde/doença e trabalho, a saber –Medicina do Trabalho.

Centrada na figura do médico, sob a visão eminentemente biologicista e individualizante, a Medicina do Trabalho concebe o adoecimento numa perspectiva unicausal e atua no espaço exclusivo da fábrica. Ao mesmo tempo em que busca identificar os processos danosos à saúde dos trabalhadores, funciona como uma aliada do empresariado objetivando a recuperação do trabalhador e seu pronto retorno à linha de produção (Minayo-Gomez; Thedim-Costa,1997).

Por sua vez, o campo da segurança no trabalho se fortalece sob outro paradigma –a Saúde Ocupacional. A crença no prevencionismo, calcada na noção de risco e do controle de agentes ambientais, será adotada por novos profissionais, como engenheiros e técnicos de segurança que, em conjunto com os médicos, executam a Gestão da Segurança e Saúde nos espaços de trabalho. O foco de suas ações consiste em evitar o acidente de trabalho3, mas caso ocorra, é atribuição do médico a tarefa de «curar» o trabalhador.

A atuação no campo da segurança no trabalho é norteada pela concepção de «ato inseguro». Esta premissa defende que a prevenção ou o acidente de trabalho é fruto de escolhas conscientes dos trabalhadores em situações com possibilidade de controle absoluto da situação. A segurança, sob a influência das ideias da Organização Científica do Trabalho, estaria associada ao cumprimento de normas e procedimentos legais ou administrativos. Deste modo, identificar o «ato inseguro» implicaria comparar o comportamento do trabalhador a determinado padrão. A prevenção, por sua vez, resultaria do estímulo à mudança do comportamento dos trabalhadores, punindo os comportamentos não desejados e premiando os desejados (Almeida, 2006).

A concepção de «ato inseguro» torna-se uma armadilha para o trabalhador na medida em que tende a reduzir as causas do acidente de trabalho ao comportamento racional dele, muitas vezes a partir de um discurso culpabilizador que desconsidera as relações sociais e históricas que permeiam o trabalho.

O paradigma da Saúde do Trabalhador, por sua vez, é fruto de movimentos sociais iniciados na Itália com o Movimento Operário Italiano e que se espraiaram a diversos países na década de sessenta, cujas reivindicações refletiam a luta dos trabalhadores por espaços mais dignos de trabalho, a partir de questionamentos sobre a não delegação da vigilância da saúde, exclusivamente, ao Estado; a não monetarização do risco; a validação do saber dos trabalhadores a partir de estudos independentes sobre ambientes, as condições de trabalho e os processos de adoecimento. A Saúde do Trabalhador, fundamentalmente, traz à cena o conhecimento do trabalhador, sua subjetividade, na tentativa de integrá-lo ao conhecimento técnico-científico.

Teoricamente situada no campo da Medicina Social Latinoamericana, na interface com Saúde Pública e a Saúde Coletiva, a Saúde do Trabalhador incorpora referenciais do campo das Ciências Sociais, especialmente do pensamento marxista. A principal referência para o estudo dos condicionantes da saúde-doença é o conceito marxiano de processo de trabalho, que permite considerar a dimensão social e histórica do trabalho na sua relação com a saúde/doença. De outro modo, uma das principais premissas metodológicas do campo da Saúde do Trabalhador, o reconhecimento do saber do trabalhador calcado na experiência, resulta do conhecimento acumulado pela ação dos sindicatos nos locais de trabalho, originário do Movimento Operário Italiano (Minayo-Gomez; Thedim-Costa, 1997).

Alinhada aos princípios do campo da Saúde do Trabalhador, a Teoria da Psicodinâmica do Trabalho, elaborada por Christophe Dejours, analisa as relações que se estabelecem entre a organização do trabalho e os processos de subjetivação do trabalhador. Assim, a subjetividade refletiria a capacidade de atribuição de sentido pelo trabalhador, construído na sua relação com o trabalho. Nesta perspectiva, a organização do trabalho seria entendida, por um lado, como a divisão das tarefas, –aquilo que permite a alguns indivíduos definir por outros o trabalho a ser executado, o modo operatório e os ritmos a seguir; por outro, implicaria a divisão dos homens– os dispositivos de poder que se travam nas relações de trabalho, ou seja, diz respeito à hierarquia, à supervisão e ao comando (Dejours; Dessors; Desriaux, 1993).

Ao admitir a dimensão do trabalho crucial para a constituição da identidade do sujeito e como base da saúde mental, compreende-se o papel do trabalho na construção do equilíbrio psíquico e da saúde do trabalhador, mas o modo como se organiza o trabalho pode colocar em risco este equilíbrio que quando ameaçado, leva o sujeito à utilização de defesas. O sofrimento só pode ser captado por meio das defesas, cujo principal papel é resistir psiquicamente às agressões resultantes de certas formas de organização de trabalho. A eficácia das defesas consiste na dissimulação do sofrimento e a causa deste escapa aos trabalhadores. Portanto, as defesas podem funcionar no sentido de evitar a tomada de consciência quanto às relações de exploração a que estão submetidos os sujeitos nas relações de trabalho (Dejours, 2004).

A Psicodinâmica do Trabalho diverge das ideias psicologizantes que reforçam a preocupação com o fator humano na busca de explicações para o acidente de trabalho e que em última instância, favorecem a concepção de «ato inseguro», configurando-se como outra possibilidade de análise que sem prescindir do humano, articula-se com outros saberes, em especial construídos no âmbito das Ciências Sociais, capazes de compreender a complexidade das relações saúde/doença e trabalho e com os quais, almeja-se contribuir para superar a culpabilização dos sujeitos quando se acidentam ou adoecem. 

O Trabalho de Pesquisa

Ao situar o estudo no campo da Saúde do Trabalhador, necessariamente, comunga-se de suas premissas, em especial, aquela que afirma a necessidade de escuta dos trabalhadores. O que implica o seu reconhecimento como sujeitos sociais dotados de conhecimento e experiência, capazes de reflexão sobre a realidade e de atuarem como agentes de mudanças.

A pesquisa faz a opção pela abordagem qualitativa em saúde, herdeira da concepção advinda das Ciências Humanas de que se faz importante não só o estudo do fenômeno em si, mas a compreensão do seu significado individual ou coletivo, posto que considere o significado na sua função estruturante «em torno do que as coisas significam, as pessoas organizarão de certo modo suas vidas, incluindo seus próprios cuidados com a saúde» (Turato, 2005:509). Essa abordagem reconhece na subjetividade, não a impossibilidade de construção do conhecimento científico, diferente do modelo científico clássico objetivista e quantitativista, mas o aspecto singular do fenômeno social, o qual se propõe a estudar (Minayo, 2004).

Ainda, sobre a abordagem qualitativa ressaltam-se seus fundamentos na Epistemologia Qualitativa como nos informa Rey (2005). Deste modo, o conhecimento é entendido como um processo construtivo-interpretativo sobre a realidade e não uma apropriação linear da mesma.

O autor propõe o conceito de «zona de sentido» para melhor elucidar o processo de construção do conhecimento, que confere valor a este não por gerar uma correspondência linear com o real, mas por possibilitar campos de inteligibilidade que tragam por conse­quência novas vias de ação sobre a realidade ou mesmo novos caminhos para a formulação teórica.

Outro princípio da Epistemologia Qualitativa é o entendimento da pesquisa como um processo de comunicação dialógico. Desta feita, para o autor, «A comunicação é uma via privilegiada para conhecer as configurações, os processos de sentido subjetivo que caracterizam os sujeitos individuais e que permitem conhecer o modo como as diversas condições objetivas da vida social afetam o homem» (Rey, 2005:13).

O conhecimento proposto, necessariamente, perpassa a comunicação dialógica com os atores sociais, especialmente, os trabalhadores, sujeitos privilegiados da pesquisa. Ao se valorizar a escuta dos trabalhadores, considera-se que a compreensão da subjetividade e do significado coloca ao processo de pesquisa a necessidade de solução de dicotomias como indivíduo/social, macro/micro, interioridade/exterioridade. Nessa perspectiva, para Minayo (2004), a dialética marxista se apresenta como possibilidade de dimensionar o significado sem menosprezar a base material que lhe dá origem, ao analisar o sistema de relações que constroem o mundo exterior ao sujeito e as representações sociais que permeiam as relações objetivas dos indivíduos, as quais atribuem significados.

Para a análise dos dados, pautamo-nos na proposta da autora que apresenta a Hemenêutica-Dialética como um «caminho do pensamento» a ser trilhado no tratamento dos dados na abordagem qualitativa em pesquisa. A expressão «caminho do pensamento» busca diferenciá-la da Análise de Conteúdo e a Análise de Discurso, enquanto técnicas de interpretação de textos.

A relação de complementariedade entre a Hermenêutica e a Dialética é possível, enquanto a hermenêutica penetra no seu tempo, buscando compreender o sentido do texto a partir do acordo e da unidade, a crítica dialética se dirige contra seu tempo, enfatizando a diferença, o contraste, o dissenso e a ruptura de sentido. Assim, hermenêutica-dialética permite ao pesquisador entender o texto, a fala, o depoimento como resultado de um processo social (trabalho e dominação) e processo de conhecimento (expresso na linguagem), frutos de múltiplas determinações, mas com significado específico (Minayo, 2004).

A entrevista foi escolhida como principal instrumento para a produção de dados. Sua importância no âmbito das Ciências Sociais advém do fato de que a fala configura-se como reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos, transmitindo através de um porta-voz as representações de determinados grupos, em condições históricas, socio-econômicas e culturais específicas (Minayo, 2004).

Para além das entrevistas, utilizou-se o diário de campo que se apresenta como instrumento importante por congregar um conjunto de informações resultantes das observações realizadas no campo, implicando não só as observações atinentes ao objeto de estudo per si, mas como indica Chizzotti (1995) a própria participação do pesquisador nas situações por ele vividas, envolvendo percepções, hesitações, conflitos, entre outros aspectos no curso da pesquisa.

Por fim, quanto à pesquisa documental, pode-se lhe atribuir utilidade enquanto recurso auxiliar principalmente na construção dos diversos discursos os quais o pesquisador se propõe a analisar. Como refere Chizzotti (1995:109) a «Documentação é toda a informação sistemática, comunicada de forma oral, escrita, visual ou gestual, fixada em um suporte material, como fonte durável de comunicação». Desse modo, análises de revistas, jornais, sites, impressos, vídeos, relacionados à empresa estudada, assim como, análises de documentos dos trabalhadores como laudos médicos, Comunicações de Acidente de Trabalho (CAT’s)4 foram feitas a fim de assegurar os objetivos do presente trabalho.

O campo ocorreu nos municípios de Barcarena (PA) e Abaetetuba (PA) e constituíram-se sujeitos da pesquisa, trabalhadores e ex-trabalhadores diretos da empresa, trabalhadores terceirizados que atuam ou atuaram na área operacional, familiares, dirigentes sindicais e ex-sindicalistas do Sindicato dos Metalúrgicos do Pará (Simetal) e Sindicato dos Metalúrgicos de Barcarena (Simeb). Ainda, representantes da ADRVDT-CPA; Gestores do Programa de Gestão da Segurança e Saúde do Trabalhador e técnicos da área de Segurança e Saúde no Trabalho da empresa.

Quanto às etapas da pesquisa, inicialmente, ocorreram diversas visitas à empresa, ADRVDT-CPA e Simeb, previamente agendadas e consentidas, bem como, realizou-se a análise de documentos de caráter técnico, econômico, científico, pesquisados em sites, arquivos institucionais, bibliotecas, entre outros, o que permitiu sistematizar informações sobre processo de trabalho, adoecimento e transformações sofridas pela empresa ao longo do tempo, aspectos fundamentais para a compreensão do cenário em questão. No segundo momento, foram realizadas 44 entrevistas individuais, gravadas e transcritas, e por fim analisadas. Vale salientar, que no momento anterior à entrevista, os sujeitos da investigação foram informados sobre os objetivos do estudo, a participação voluntária e o sigilo quanto à identificação dos informantes. Por fim, os informantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido cujo texto orientava sobre a utilização das informações fornecidas para efeito exclusivo de pesquisa.

Esta análise centrada na segurança e saúde do trabalhador5 tangencia observações feitas por gestores, médicos, engenheiros, técnicos de segurança que por suas posições dentro da empresa e práticas durante as entrevistas responderam de forma standartizada, quando não se recusaram. Em alguns casos, a equipe disponibilizou documentos oficiais, manuais sobre a política de segurança interna. 

A Empresa e a Organização do Trabalho

A empresa foi constituída no final da década de setenta, após a assinatura de um acordo de cooperação entre o governo brasileiro e o governo japonês para a construção de um complexo produtor de alumínio no Estado do Pará. Surge como uma empresa integrante do grupo Vale do Rio Doce que, inicialmente, era uma estatal do setor da mineração. Em 1989, ela inicia a implantação do programa de qualidade utilizando a metodologia do Total Quality Control (modelo japonês) e em 1996 inicia o programa Círculos de Controle de Qualidade (CCQ). Em 1997, a Vale do Rio Doce foi privatizada e em 2010, a empresa foi vendida para a Norsk Hydro, empresa norueguesa, produtora de alumínio.

Empresa do setor da metalurgia apresenta um processo produtivo com diversos riscos à segurança e saúde dos trabalhadores. De acordo com a Enciclopedia de Salud y Seguridad en el Trabajo da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1998), a conexão entre o alumínio e a neurotoxidade profissional ainda se encontra no campo especulativo, entretanto, o processo de trabalho desse setor produtivo expõe os trabalhadores a riscos específicos, dos quais os mais comuns são lesões ocasionadas por derramamento ou salpicamento de metal fundido; explosões ocasionadas pelo contato do metal fundido com água; colisões de veículos que transportam materiais; quedas de materiais extremamente pesados; exposição a altas temperaturas devido aos fornos de metal em fusão; contato direto com metais e outras substâncias na utilização de produtos químicos ao longo do processo; ruídos relacionados ao funcionamento do maquinário como ventiladores de descarga de gases e fornos elétricos de alta potência. Ainda, também são conhecidos os riscos que podem ocasionar agravos à saúde do trabalhador que se associam à própria organização do processo de trabalho.

Carmo (2000) já enfatizava os riscos à saúde dos trabalhadores que atuam na empresa produtora de alumínio, posto que, encontram-se expostos a uma variedade de agentes agressivos: físicos (como exposição a altas temperaturas), químicos (pela utilização de diversas substâncias químicas no processo como o coque, piche, fluoreto de alumínio, entre outros), além dos riscos mecânicos (presentes em tarefas que exigem grande esforço físico).

Com um processo produtivo que traz em seu bojo inúmeros riscos, a questão da Segurança e Saúde Ocupacional é apresentada pela empresa como um dos pilares de sua Política de Gestão, encontrando-se presente, portanto, na própria missão da instituição, qual seja, Produzir e entregar alumínio aos clientes, no mais alto padrão de qualidade e nos prazos estabelecidos, otimizando o uso de seus ativos, operando com segurança, preservando o meio ambiente e a saúde dos trabalhadores (grifo nosso), apoiando o desenvolvimento sustentável das comunidades e buscando o desenvolvimento dos fornecedores e a satisfação de seus empregados e acionistas (Albras, 2007).

Seu modelo de gestão empresarial está pautado na Gestão da Qualidade Total envolvendo todas as áreas da empresa e fundamentando-se em ações como autogerenciamento por parte do empregado, análises críticas de lideranças, auditorias, aprendizado organizacional, aperfeiçoamento dos padrões de trabalho e das práticas de gestão de forma contínua e inovadora (Albras, 2008).

Desta feita, o modelo de Gestão em Segurança e Saúde Ocupacional nessa empresa, de acordo com Piza (2001), passa a basear-se nos mesmos critérios da gestão de qualidade, merecendo destaque: liderança, definindo responsabilidades dos líderes (diretores, gerentes, etc.) e estabelecendo que todas as diretrizes emanem da mais alta administração, inclusive a necessidade de diagnósticos; processos, e de acordo com as determinações desse critério, quando desvios ou anomalias são identificados (entendidos como desvios de processo) devem ser eliminados de forma que não prejudiquem o desenvolvimento harmonioso das atividades, que por sua vez, baseiam-se em normas e procedimentos padronizados; tecnologia, aspecto que aponta que para cada processo ou para cada resultado deve-se selecionar no mercado, ou em outro local quando houver padrões de referência; pessoas, para a consolidação do modelo de gestão em Segurança e Saúde Ocupacional, torna-se fundamental o comprometimento das pessoas que busca ser alcançado através de programas que promovem a participação e o comprometimento como os CCQ’s e o 5S6. A isso se acrescenta a Participação de Resultados (PR) quando do atendimento dos critérios estabelecidos, dos quais enfatizamos os relacionados à segurança e saúde no trabalho. Assim, todos estes instrumentos atuam para garantir a motivação necessária para que as metas sejam alcançadas e superadas.

Harvey (2008) aponta que a transformação político-econômica resultante da crise sistêmica do capitalismo, no final do século XX, evoca um momento de transição no regime de acumulação e no modo de regulamentação social e política a ele relacionada.

O novo regime de acumulação denominado acumulação flexível, apoia-se na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo, surgindo em confronto direto com a rigidez da organização do trabalho fordista. Se o sistema fordista ampliou-se no decorrer do longo ciclo de desenvolvimento econômico do capitalismo, garantindo a produção em massa para mercados em expansão, o mesmo não se pode afirmar do mundo da produção na ótica da acumulação flexível. A crise econômica do fim dos anos sessenta e início dos anos setenta do século XX, levando o mundo a uma profunda recessão, apontava para um quadro de enfraquecimento da demanda, saturação dos mercados, aumento da competitividade, elevação das taxas de desemprego, entre outros.

Foi neste cenário, que se propagou o sistema de organização de trabalho toyotista que, a partir da mundialização do capital, assume contornos universais. Para Alves (2007), o toyotismo é o verdadeiro espírito da reestruturação produtiva que decorre da crise estrutural do capital nos anos setenta.

Dentre as marcas do toyotismo, o autor salienta, entre outros aspectos, os diversos tipos de Programas de Gerenciamento pela Qualidade Total, a terceirização, constituindo em torno da firma central uma série de empreendimentos subcontratados; a organização da produção em grupos de trabalho (team work); as novas técnicas de manipulação gerencial que cobiçam os valores dos trabalhadores, suas crenças, sua interioridade, sua personalidade.

Heloani (2003) enfatiza que o TQC, ou como o conhecemos, controle de qualidade total, é uma das teorias que melhor utilizaram a ideia do aproveitamento das qualidades pessoais para a esfera da produção. Desta feita, a peculiaridade do modelo japonês não seria a inovação tecnológica, mas uma nova forma de administrar pessoas e grupos de trabalho.

Neste sentido, segundo o autor, é importante considerar dois aspectos. O primeiro, na via japonesa, ocorre a desespecialização dos trabalhadores para transformá-los em trabalhadores polivalentes ou multifuncionais. A ação de racionalização do trabalho objetiva aumentar a intensidade do trabalho ao mesmo tempo em que diminui o saber complexo do operário sobre sua atividade, limitando seus poderes sobre a produção.

O segundo aspecto, os Programas de Qualidade Total, no intuito de reorientar as pessoas e unidades da fábrica em prol da qualidade do produto, modelam o comportamento dos trabalhadores, gerando comprometimento dos mesmos com a empresa e o produto, otimizando a qualidade e a produtividade.

O modelo toyotista que se desenvolveu na sociedade japonesa trouxe a marca da cultura daquele país. Portanto, a implantação de princípios do modelo toyotista, em nosso país, tem se dado desconsiderando-se a diversidade da cultura local o que possibilita choques culturais na construção de culturas organizacionais nas empresas. Percebe-se que no processo de reestruturação produtiva, configura-se a necessidade de criar/recriar a cultura organizacional a partir de novos princípios, valores que passam a ser compartilhados por todos os integrantes da organização. Do mesmo modo, modificam-se as relações de poder, que passam a ser encobertas pelo discurso da necessidade de cooperação entre o trabalhador e a empresa no intuito de garantir a produtividade e a qualidade.

O trabalho de Carmo (2000) revela que a implantação do Programa de Qualidade Total na empresa foi se dando não sem conflitos ou mesmo resistências, passando por várias fases e atingindo de modo peculiar os diferentes setores da empresa. Outras experiências vividas em práticas sociais distintas demarcaram a necessidade de reconstrução de uma cultura de trabalho.

Segundo o autor, na empresa, os trabalhadores da produção expressavam ironicamente as dificuldades em assimilar o novo modelo utilizando a expressão «Tem que ser» em referência ao TQC. Muitas vezes, o TQC era associado à maior carga de trabalho e à cobrança das chefias.

Utilizando-nos da concepção dejouriana de organização do trabalho, salientamos alguns aspectos da reestruturação produtiva vivida pela empresa estudada que impactam no modo como o trabalho se organiza e como é feita a gestão da segurança e saúde ocupacional, a partir da perspectiva da subjetividade dos trabalhadores.

Relatos de ex-operadores e operadores da empresa referem que devido às mudanças tecnológicas, ocorreu a redução no quadro de trabalhadores ao longo do tempo, gerando sobrecarga de trabalho –que se alia ao aumento da pressão pela produtividade, como se observa nas falas a seguir: 

Antigamente eu peguei muito pior do que hoje que era muito mais pesado, muito mais cansativo, apesar de ter mais gente, mas era muito mais cansativo. […] Maquinário. Porque nós tínhamos... porque a nossa função era produzir alumínio líquido... só que em virtude do processo lá, gerava o que a gente chama de carvão, gerava impurezas que teria que ser retirada do forno. Na época era com uma... a gente chamava de escumadeira, só que muito pesada, tinha que ser no braço e muitas das vezes a gente fazia sozinho porque não tinha parceiro para ajudar. Depois passou a ser utilizado o papa-lamas que melhorou, realmente melhorou muito, mas ainda continua pesado o serviço. (Antônio Carlos7, operador). 

Isso porque em 98 foi desmembrada uma equipe e ficaram duas equipes em cada chumbamento, aí isso daí sobrecarregou a gente demais. Quer dizer, na minha equipe, quando eu entrei, éramos 26 pessoas, o gerente e o encarregado, né... líder de equipe, eram 26 pessoas, mecânico e tudo o mais. Depois ficamos em torno de 12, no apoio e tudo o mais. Aí, quer dizer, que sobrecarregou muito. (Francisco, operador). 

Sim, teve uma redução de pessoas. Mudou o quê? A cobrança, muita cobrança. (Sérgio, operador). 

Neste cenário de mudanças, destacamos no que tange às tarefas executadas pelos trabalhadores a distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real8 como uma característica da própria gestão da segurança e da saúde ocupacional, se não vejamos,

Aí eu digo assim pra você: tem que pegar a tampa com os dois braços. Sim, é o certo, mas se você fizer do jeito que eles querem, do PRO9, você não consegue terminar o seu trabalho. É como eu digo pra você, a pendência continua no trabalho, desse problema. […] Não é compatível. Aí quer dizer, você faz certas coisas que não é pra você fazer. Aí quer dizer, você quer adiantar aí posso falar pra você, aí lá você se acidenta. (Sérgio, operador). 

Muitas vezes o operário é obrigado a fazer uma operação, ele sabe que é um risco muito grande... a pressão é tão grande... dos gerentes operacionais, dos gerentes de área que quer que aquela operação seja feita que ele acaba se arriscando... muitas vezes ele se acidenta e aí não adianta —Eu fiz porque ele me obrigou. —Não, você não é criança. Você não conhece as normas da empresa? […] Então, é uma pressão psicológica muito grande hoje que impacta sobre a saúde do trabalhador e essa pressão acaba fazendo com que ele «perca as estribeiras», não pense direito e acabe provocando um acidente que às vezes pode ser um acidente bobo ou um acidente muito grande. (Paulo, ex-operador, sindicalista). 

Eles passam a mensagem realmente para você em um momento lá que qualquer material, qualquer equipamento, qualquer problema que pode levar a risco de acidente, pode encostar. Isso funciona mesmo. Olha é proibido sair com o veículo sem freio —Olha, está sem freio aqui —Tá, vou chamar o mecânico. Passa meia hora, uma hora —Olha, ele está em uma emergência pra lá, vai demorar um pouco. Aí sabe que tu faz? Tu vai fazer, porque se tu não faz vem um outro do teu turno com o mesmo problema e faz tudinho. Aí o que acontece, vão falar: Olha, o cara não quis fazer, ficou enrolando lá, ele é preguiçoso. Aí são umas coisas aí que levam... uma coisa puxa a outra. […] Fica mal visto. Aí o próprio gerente vem, a gente percebe —Olha, está sem freio há dois dias e o pessoal que estava nem trocou anodo, nem abasteceu, nem nada, não fez nada. Aquilo volta pra ti, aí você já fica... um negócio meio complicado. Às vezes você não sabe o que tu faz. (Rodrigo, operador). 

Assim, diante de situações imprevistas ou naquelas em que haja necessidade de intensificar a produção, as normas de segurança são colocadas em segundo plano com a anuência velada de gestores e mesmo dos companheiros de trabalho. O trabalhador é colocado diante de um «dilema ético», de fazer o que não está prescrito. Compreendendo-se o prescrito como o correto, ocasionando tomadas de decisão capazes de gerar sofrimento psíquico. Na análise elaborada por Dejours (2007a) os trabalhadores são levados, de modo sutil, ao não cumprimento de regras induzidos pelos gestores e pelos próprios colegas de trabalho no intuito de garantir a produtividade, em algumas situações trazendo risco à segurança individual e mesmo coletiva.

Outro aspecto relevante diz respeito ao discurso culpabilizador do trabalhador quando ocorre um acidente de trabalho, utilizado pela empresa e introjetado pelos próprios trabalhadores, configurando-se como um traço da cultura da segurança nessa organização, como se pode notar na sequência,

Geralmente, 99 por cento dificilmente assume que o acidente adveio de uma falha da empresa. Geralmente... passei muita análise de acidente, os técnicos já vão com essa ideia. Só acusar. […] Mas geralmente é isso, a falha, geralmente eles preferem atribuir ao funcionário. (Antônio Carlos, operador). 

Um acidente eu acredito que tenha vários motivos. Um exemplo, se você está muito cansado, com sono, isso pode te levar a um vacilo e outra, sempre é a pressa. Então, eu acredito que seja um pouco assim de atenção do próprio operador. (Rodrigo, operador). 

Ao focar a análise do acidente de trabalho sobre o comportamento do trabalhador, a empresa desconsidera outras possíveis causas para sua ocorrência, por exemplo, más condições de equipamentos e maquinários ou mesmo a pressão por maior produtividade. Ainda, atribuído o «erro» do trabalhador à causa do acidente, ele pode ser punido com advertência, e em casos extremos, demitido, como salientado nos relatos abaixo: 

E quando tá pegando lá, as pendências?10 Uma farsa, eu não vi nada, eu não sei de nada. A gente chega e arrebenta. É como eu digo pra você, a gente faz tudo ao contrário. […] Faz vista grossa. Aí quando está tudo bem que vê o operador fazendo uma coisa que fugiu do procedimento, você leva gancho. É muito injusto, né. Porque como eu falo assim pra você, a empresa implanta uma coisa, mas não se vê. […] Por causa... devido o acidente que você se acometeu você vai ter que falar para o seu GO (Gerente Operacional) e o GO vai passar, aí vai ter que analisar. E quando você se senta naquela mesa você se sente constrangido de tanta pressão que você pega, de tanta coisa que você vai ouvir lá. Não é verdade? E no final se você está errado você vai pegar um gancho, você pode ser até demitido. (Sérgio, operador). 

A culpabilização do trabalhador se sustenta na concepção de «ato inseguro» utilizada pelos profissionais da segurança, manifestando relações assimétricas de poder em que o conhecimento do técnico ou do engenheiro de segurança que referenda a tomada de decisão dos gestores se sobrepõem ao conhecimento do trabalhador.

Percebe-se uma oscilação no discurso dos trabalhadores entre atribuir culpa, considerando como causa do acidente de trabalho, a falta de atenção ou a autoconfiança dos próprios operadores; e o sentimento de injustiça e impotência diante desta situação de culpabilização, demonstrando que os mesmos não conseguem assumir nessa organização o lugar de protagonistas na gestão de sua segurança e saúde.

Contrariamente, ao introjetar o valor daquele que «veste a camisa», engajado e comprometido com a produção, capaz de assumir cada vez mais responsabilidades, o trabalhador reproduz o que dele é esperado, enfrenta os riscos que o trabalho apresenta. A seguir destacamos fragmentos de experiências vivenciadas por operadores e ex-operadores da empresa estudada, em que o caso de Francisco apresenta-se como emblemático do aspecto do engajamento do trabalhador que buscamos ressaltar. 

Trabalho, Acidentamento e Adoecimento: trajetória de vidas interrompidas

A partir do relato de três trabalhadores sobre suas trajetórias, estabelecem-se relações entre a organização do trabalho, situações de acidentamento/adoecimento e o sofrimento psíquico manifesto por eles.

Carlos, 40 anos, trabalhou na empresa por sete anos. Em 1990, sofreu acidente de trabalho com lesão no joelho dentro da área de operação. Foi encaminhado para o ambulatório médico da empresa, medicado e afastado das atividades. Relaciona o período do acidente com duas situações vivenciadas pela empresa naquele momento: o blecaute (interrupção do fornecimento de energia elétrica), que colocou em risco o maquinário, afetando ainda a produção; e a greve, que impediu a entrada e saída de trabalhadores na troca de turnos. Após o blecaute, os trabalhadores foram convocados a virar turnos e na greve quem estava dentro não pode sair. Este trabalhador então nos diz: «aí a gente tava no trabalho direto, cansado, com sono, porque você dormir dentro de uma redução com o barulho, você não descansa.» (Carlos, ex-operador).

Apesar das mudanças na organização do trabalho tanto no decorrer do blecaute quanto da greve, implicando exaustivas jornadas de trabalho com sobrecarga e do registro do técnico de segurança sobre o acidente de trabalho; no ato do atendimento ambulatorial da empresa, o médico afirmou ao trabalhador que a causa da sua lesão não era o acidente e sim o jogo de bola que participava nos momentos de lazer, não realizando desta feita a emissão da CAT. Salientamos ainda que no Relatório de Acidente de Trabalho realizado pelo técnico de segurança, o acidente foi caracterizado como potencialmente grave e apesar da constatação do ruído excessivo do ambiente e de «certa fadiga» manifestada pelo trabalhador associada à falta de descanso, dentre as causas para sua ocorrência, é enfatizado o «ato inseguro». Conclui o relatório pela realização do procedimento de forma incorreta pelo trabalhador.

Após o acidente, sucederam-se vários afastamentos de Carlos para tratamentos médicos e retornos sem acompanhamento para a mesma atividade de trabalho, que culminaram com a oferta da empresa para que o trabalhador integrasse o Plano de Demissão Voluntária-PDV o que foi aceito.

 Francisco, 43 anos, ingressou na empresa em 1994, atualmente encontra-se afastado para tratamento de saúde, recebendo auxílio-doença do INSS. Em 1996, ao sentir fortes dores na coluna recebeu o diagnóstico de hérnia discal. Para o tratamento médico, necessitou algumas vezes se afastar do trabalho e quando retornava, contudo, sempre cumpria as mesmas funções que o obrigavam, muitas vezes, a carregar peso. Afirma ter executado diversas atividades de trabalho implicando esforço físico, bem como dedicação extremada à empresa, como relatado, «Não tinha muito descanso nas minhas folgas. Às vezes estava me preparando pra ir pra praia, a Kombi encostava: ‘Olha, problema no britador’, ‘É rápido’. Quando chegava lá o problema era maior, aí passava o dia todinho. Aí já era.» (Francisco, operador).

Para Francisco, o elevado grau de comprometimento com a empresa lhe permitiu galgar novas funções, ao mesmo tempo trouxe grande sobrecarga de trabalho, o que ocasionou grave adoecimento. As limitações de vida impostas pelo adoecimento impactaram na sua saúde mental, levando-o à depressão. Ao relacionar o seu adoecimento à atividade desempenhada, o trabalhador não obteve o reconhecimento pela empresa de tal relação, o que fez com que buscasse orientação junto à ADRVDT no intuito de conseguir o preenchimento da CAT.

Jorge, 34 anos, iniciou na empresa no ano de 2002 e em 2008 foi demitido. Refere adoecimento que recebeu o diagnóstico de hérnia de disco o qual relaciona ao esforço físico que realizava na fábrica. No primeiro momento, sentiu fortes dores no local de trabalho quando no desempenho de suas tarefas, mas mesmo assim continuou trabalhando e fazendo uso de medicação para aliviar a dor. Em 2005, o quadro se agravou ao desempenhar tarefa que envolvia carregamento de peso, diz ter ficado «travado», sendo removido do local de trabalho ao hospital de ambulância. Foi afastado do trabalho para tratamento médico. De posse de laudo médico sugerindo reabilitação com mudança de atividade laboral, retornou a mesma função. A orientação da médica da empresa foi que deveria desempenhar atividades evitando maquinário que ocasionasse vibração. Em 2008, novamente necessitou de afastamento médico, no seu retorno trabalhou alguns dias na mesma função e no final de um dia de expediente lhe foi comunicada a sua demissão. No momento lhe foi dito que deveria olhar para dentro de si, pois não estava cumprindo com o que era exigido pela empresa: comprometimento, honestidade, competência. Relata que sempre desempenhou o seu trabalho, nunca se «encostou» nos colegas, nunca desrespeitou ninguém e que com dez meses de empresa foi promovido por bom desempenho. Mesmo quando questionou que ainda se encontrava em tratamento médico, a demissão foi mantida. Procurou a ADRVDT para orientação e apoio na busca da garantia de seus direitos trabalhistas.

Os relatos dos trabalhadores, aqui sintetizados, referem-se a trajetórias de vida e trabalho particulares, mas permitem a reflexão sobre alguns elementos comuns, a percepção dos trabalhadores de que o reconhecimento pelo trabalho não mais é realizado pela empresa a partir do momento em que adoecem e, ainda, a conduta da empresa frente ao adoecimento dos seus empregados. Este cenário apresenta-se como fator gerador do sofrimento deles.

Pautada em forte marketing interno e externo, a empresa constrói ações para garantir a autopromoção, visando certa exclusividade e transmitindo aos funcionários a ideia de uma organização de renome, a melhor da região (Carmo, 2000). Segundo esse marketing, trabalhar nessa empresa é um privilégio, devendo o trabalhador se sentir orgulhoso de fazer parte dela. Portanto, ela assume para o empregado o status de lugar ideal para trabalhar, o lugar da oportunidade, que viabiliza os sonhos e projetos de vida.

Entretanto, para os trabalhadores adoecidos, a trajetória trilhada na empresa suscita sentimentos de inutilidade e abandono, como se observa a seguir: 

Qual serviço social que a empresa presta para a comunidade? Para os próprios ex-funcionários dela que foram vitimados por doença, sequelados? Nenhum. Então eu não tenho assim saudade nenhuma […] se eu soubesse o que iria acontecer comigo, eu jamais teria entrado e jamais hoje em dia deixo um filho meu entrar em uma empresa dessas, principalmente redução... eu acho que nenhum do processo da Vale. (Carlos, ex-operador). 

Foi uma tragédia em cima disso tudo que aconteceu. Imagine que eu pensei em ir pra empresa pra melhorar, pra estudar e não foi bem isso que aconteceu comigo. […] A minha saúde que eu tinha foi muito anterior a esse acidente […] A minha esposa chegou a um ponto de dizer que não tava agüentando mais isso tudo, porque a gente tinha uma vida: A gente podia sair, podia ir pra Salinas, podia se divertir, podia ir pra outra praia, agora é tudo difícil, eu não consigo (Francisco, operador). 

Eu fiquei muito triste com a empresa pela falta de apoio que eu tive... Porque eu fiquei aqui sem andar, sai daqui sem andar, fui levado pro hospital, chequei no hospital só me colocaram numa cadeira de roda, só deram, passaram os dados lá pro hospital e foram embora. Desde essa hora, ninguém ligou pra mim, ninguém quis saber de mim e eu passei 90 dias e o gerente nem sequer dizer: «Ei, morreu?», nem perguntou... […] Então, quer dizer, qual a empresa que tem psicólogo, tem assistente social, tem tantos médicos que ela diz... e vem cá, é tão caro uma ligação? É tão difícil você ver o lado do funcionário? Quer dizer,... olha, eu fiquei lá, o gerente não ligou, assistente social não ligou... nada. (Jorge, operador). 

Subjetivamente, o adoecimento aparece para o trabalhador como tragédia, pois interrompe a trajetória da vida profissional e pessoal. Para além do sofrimento gerado pelo próprio estigma do adoecimento, o sofrimento psíquico resulta de uma relação com a organização do trabalho adoecedora, posto que, ao adoecer é a dimensão do reconhecimento da empresa pelo engajamento do trabalhador que está em jogo, colocando em xeque o ser trabalhador, aquele que, pelo trabalho, dedicou-se e sonhou com uma vida melhor, como interpretado do depoimento que se segue, 

Tenho dificuldade e as dores são muito constantes. Eu só vivo a peso de remédio. A minha vida mudou. Mudou completamente. Eu tenho que andar com muletas, com apoio, mudou toda a minha vida. Eu sinto dores direto, dores nas pernas, dores na lombar, na cervical, dores de cabeça... eu tenho insônia direto, tenho que fazer tratamento psiquiátrico, psicológico, tá. E tudo isso veio se acarretando, fora os problemas dentro da empresa que causaram pra mim, que os advogados da empresa fizeram contra mim: levantaram um processo pra cima de mim. Eu fiquei mais traumatizado porque eu não esperava isso da empresa. Um monte de mentiras sobre minha pessoa e não foi isso que eu fiz pela empresa. Esse é o ganho que a gente tem, que a gente tem por ter feito, por fazer por uma empresa melhorar a qualidade de vida de seus funcionários, a sua produção? Isso é o ganho que a gente recebe? Não é isso que é pra acontecer. (Francisco, operador). 

Por sua vez, o discurso organizacional procura evidenciar os investimentos em segurança e saúde, amplamente divulgados entre o público interno e externo. Como afirma Siqueira (2009: 213-214), constrói-se a imagem de uma empresa de fato preocupada com seus funcionários, o que a coloca no plano discursivo, como local atrativo, o melhor lugar para se trabalhar. O indivíduo, então, começa a valorizar os benefícios que a empresa coloca a sua disposição, mesmo que a concessão feita se configure muito mais rentável à organização do que a si mesmo, o que favorece o ocultamento dos mecanismos de dominação que ao sujeito são impostos (Siqueira, 2009).

Este discurso se contrapõe às vivências de adoecimento relacionadas ao trabalho, enfrentados pelos trabalhadores ao longo do tempo. Entre os trabalhadores entrevistados que adoeceram na relação com o trabalho, identificamos queixas mais frequentemente associadas ao que Dejours (2007b) denomina de patologias de sobrecarga e patologias de assédio.

É notória a negação pela empresa da relação entre trabalho e adoecimento dos seus empregados, bem como, a capacidade de escamotear a ocorrência de acidentes de trabalho típicos que geram patologias, como se observa nas trajetórias de Carlos, Francisco e Jorge. Trabalhadores que relatam episódios pontuais ocorridos no trabalho como traumatismos ao executar dada tarefa associados a quadro de posterior adoecimento.

Como nega a relação entre adoecimento e trabalho, a empresa se furta emitir a CAT, apesar do acidente de trabalho ser de notificação compulsória. Assim foi o que ocorreu com Carlos e Francisco. Para esses trabalhadores, a emissão do documento foi realizada pelo órgão público que hoje recebe a denominação de Centro de Referência em Saúde do Trabalhador Regional Belém (Cerest Bel).

No caso da empresa estudada, o plano de saúde privado oferecido aos empregados constitui-se como mais um entrave para o registro dos acidentes. O atendimento realizado por hospitais, clínicas e médicos particulares padece de falta de fiscalização dos órgãos públicos em escala mais acentuada do que o serviço público, assim não são obrigados a cumprir o seu papel. Indiferente à legislação, o espaço privado como propriedade privada torna-se, muitas vezes, inescrutável à ação pública.

A ausência de um aparato estatal equipado de modo suficiente a cobrir de modo extenso a fiscalização em referência ao cumprimento da legislação seria outro fator a contribuir para o quadro de subnotificação. Assim, uma sociedade em que grande parte da população desconhece seus direitos, apresenta-se menos combativa, delegando funções às instâncias públicas, incapazes de dar respostas.

A notificação de acidente é um importante instrumento para gerar conhecimentos sobre as realidades locais. A partir dela é possível a tomada de decisões técnico-políticas no campo do trabalho pelas instituições concernidas. A subnotificação constitui um obstáculo para construir políticas públicas. Desta feita, é válido o questionamento: a quem interessa a subnotificação dos acidentes de trabalho?

Para melhor compreender esta questão, parte-se do princípio de que o acidente de trabalho traz prejuízos para o trabalhador, à empresa, ao Estado e à sociedade. Sem dúvida, o trabalhador acidentado é a maior vítima, não só pelas lesões físicas decorrentes, mas por consequências psíquicas associadas à discriminação enfrentada pelo afastamento do trabalho, os prejuízos na autoestima, o medo do desemprego, o desenvolvimento de patologias irreversíveis, a dificuldades de readaptar-se a uma nova função, entre outros aspectos. A empresa que tem seu trabalhador afastado, às vezes, por longos períodos, pode sofrer consequências como queda na produtividade e na motivação de seus empregados, além de arcar com alíquotas maiores pagas ao Estado em referência aos acidentes de trabalho que gera. O Estado, através da previdência social, arca com os custos do afastamento do trabalhador, paga o benefício que lhe é devido, assim como, garante sua reabilitação. A sociedade, por pagar impostos cada vez mais onerosos para sustentar o sistema, além de sofrer o impacto do conjunto de mazelas sociais resultantes do acidente de trabalho.

Por outro lado, os riscos à segurança e saúde do trabalhador escondem-se atrás da subnotificação e tornam a empresa imune à ação do Estado e da sociedade, o que favorece a manutenção de condições e organização do trabalho agressivas ao trabalhador.

Por sua vez, o afastamento de trabalhadores por invalidez denuncia um processo de trabalho adoecedor e por esse motivo, a empresa lança mão de estratégias, planos de demissão voluntária ou mesmo da demissão sumária, para descartar-se do trabalhador doente e, portanto, não produtivo, como identificado nos relatos aqui apresentados. Sob uma produção e um discurso que se guia pela lógica da qualidade, a empresa desqualifica o trabalhador doente, cujas práticas de ausência de reconhecimento do trabalho se fazem sentir, gerando sofrimento.

O ideário da gestão pela qualidade total é construído no bojo das mudanças sociais mais amplas pautadas na lógica da racionalidade econômica que compreende o utilitarismo como mola propulsora das relações entre as pessoas e destas com todas as coisas. Acidentado ou adoecido o sujeito não produz, deixa de ser trabalhador e perde sua função para a organização. 

Considerações Finais

As mudanças econômico-sociais que ganharam corpo nos últimos 40 anos para responder à crise e à saturação dos mercados refletem-se nas empresas que adotaram assim um novo modelo produtivo que se caracterizou pela redução do número de trabalhadores diretos, pela ampliação dos contratos de terceirização, gerando, ainda, redução de níveis hierárquicos, demanda pelo trabalho em equipe e por um trabalhador mais qualificado, pressão por maior produtividade, entre outras questões.

Estas mudanças trouxeram internamente um conjunto de novas normas e valores que configuraram traços ideológicos específicos inseridos no mundo empresarial, portanto, no mundo do trabalho, denominados por Boltanski e Chiapello (2009) como o novo espírito do capitalismo. Seu intuito assume dupla finalidade –abarcar novos métodos para a obtenção de lucros e melhorar o desempenho das organizações, assim como, apresenta uma faceta de caráter moral e normativo, que, segundo os autores, é capaz de revelar como as novas estratégias de obtenção de lucros podem ser atraentes, estimulantes, inovadoras ou meritórias.

Empresas que enfrentaram processos de reestruturação produtiva perceberam a necessidade de promover mudanças nas suas culturas organizacionais, capazes de gerar mudanças de atitudes e de comportamento nos agentes da produção e gestão. Tecnicamente, modelos de gestão pautados na qualidade total foram introduzidos nas organizações e mesmo com resistências, comuns aos processos de mudança, foram capazes de imputar um novo discurso. Inverte-se o paradigma de gestão –do taylorismo, cujo controle é externo e se fundamenta no cerceamento de tempos e movimentos–, aos quais se submetem os trabalhadores em troca de ganhos monetários por produção para a lógica toyotista. A cooptação da subjetividade do trabalhador, inserido na nova cultura organizacional, permite a ele a realização da autogestão da sua tarefa e de autocontrole frente às necessidades organizacionais.

A empresa estudada passou pelo processo de reestruturação produtiva, reduziu de modo expressivo seu quadro funcional, terceirizou serviços, introduziu inovações tecnológicas e modificou o processo produtivo e a organização do trabalho. As consequências para os trabalhadores têm sido perversas. Eles vêm enfrentando a precarização do trabalho com perdas de conquistas trabalhistas, perda do poder aquisitivo, intensificação de jornadas de trabalho, pressão por produção, a inexistência de ações eficazes na promoção de sua segurança e saúde no trabalho, desemprego, entre outros.

Diante da degradação das relações e condições de trabalho, notadamente se evidencia a sujeição dos trabalhadores, sugerindo uma espécie de consensualidade, garantindo o engajamento e comprometimento deles com a organização. A cooptação da subjetividade ocorre através de um discurso de valorização da pessoa, situação há muito tempo desejada pelos trabalhadores. Através de uma perspectiva individualizadora propõe-se o estímulo às competências, à autonomia, ao crescimento pessoal e se evidencia para o sujeito, desta feita, o seu papel e sua relevância para a empresa. Objetiva-se fazer com que o empregado se sinta ator e aliado da empresa (Linhart, 2007).

De outra feita, o desemprego estrutural se configura como elemento para a emulação pelo medo. O trabalhador a tudo se submete pelo temor de perder o emprego. A gestão, subliminarmente ou não, utiliza-se deste fato para garantir a cooperação de seus subordinados, para os quais o que está em jogo é a estrita lógica individual de sobrevivência.

Ainda, a liberdade, autonomia, criatividade casam-se com a atribuição de maiores responsabilidades, ou melhor, é uma autonomia e liberdade vigiadas que não permitem margem para as tomadas de decisão de fato importantes e as quais se sobrepõem maiores responsabilidades. Para Linhart (2007), torna-se improvável que, neste contexto, estabeleçam-se de fato relações de confiança entre os integrantes da organização.

Influenciada pelo processo de reestruturação produtiva e adotando o sistema de gestão pautado na qualidade total, a empresa reorganiza seu processo produtivo, provocando mudanças na organização do trabalho. No âmbito da gestão da segurança e da saúde ocupacional, observa-se esta orientação pela adoção dos princípios da gestão da qualidade total. A ênfase nos processos aponta para atividades que devem ser executadas pautadas em regras e normas da empresa, de modo que as não conformidades devem ser eliminadas. Outra característica é a valorização das lideranças das quais emanam as diretrizes que norteiam todas as ações, bem como, o papel dos gestores, entendidos como catalisadores, mobilizadores das equipes, que conduzem os trabalhadores à assimilação dos valores da cultura organizacional. Por sua vez, a utilização de tecnologia deve buscar no mercado padrões de referência para a melhoria de processos, condições de trabalho e proteção ao meio-ambiente. E por fim, a concepção sobre a importância do comprometimento das pessoas para que possam ser alcançadas as metas estipuladas pela empresa.

Desta maneira, o paradigma da saúde ocupacional se coaduna ao modelo de gestão pautado na qualidade total, como se observa na concepção de que a prevenção se faz a partir do cumprimento de regras e prescrições, definidas em última instância pelo staff gerencial e pelo corpo técnico, excluindo os trabalhadores das tomadas de decisão sobre questões referentes à sua segurança e saúde no trabalho.

O acidente de trabalho, por sua vez, é entendido pela empresa como resultado de uma não conformidade, do não cumprimento do prescrito em termos de segurança. Concepção que se aproxima da ênfase na segurança como fruto do comportamento consciente do trabalhador, ao qual cabe cumprir as regras que lhe foram transmitidas, ao mesmo tempo em que reafirma a ideologia da responsabilização, conceito cunhado por Neves (2009), que se expressa no entendimento de ato inseguro como causa do acidente.

A Gestão da Segurança e Saúde Ocupacional sob o pilar da qualidade total, ao se ater sobre o ambiente do trabalho e o controle de seus riscos desconsidera a organização do trabalho no que ela apresenta como traço mais marcante, ou seja, resultar das relações sociais que os sujeitos estabelecem no e pelo trabalho. Tais atos desembocam para uma consciência e comportamento individual. Todavia, as relações atravessadas pelo poder, pelo conflito, pela competição, são ao mesmo tempo capazes de ser expressão da cooperação e da solidariedade.

O discurso da gestão pela qualidade fortalece o paradigma da Saúde Ocupacional, desconsiderando a dimensão do coletivo na compreensão e nas ações no campo da segurança e saúde do trabalhador. Nesta medida, a Teoria da Psicodinâmica do Trabalho traz contribuições ao focar a dimensão da subjetividade que se forja a partir das relações sociais estabelecidas no trabalho.

O sofrimento dos trabalhadores adoecidos se associa ao modo como a organização do trabalho se configura na empresa. As mudanças decorrentes do processo de reestruturação produtiva ocasionando a redução do quadro de trabalhadores diretos, o aumento no número de trabalhadores terceirizados, a intensificação da jornada de trabalho constituem-se em cenário que aponta para discrepâncias entre o «trabalho prescrito» e o «trabalho real». No âmbito da segurança e saúde do trabalhador revelam-se esses efeitos.

A sobrecarga da jornada diária, o aumento da pressão por produção e as prescrições que não condizem com a realidade de trabalho levam o trabalhador a superar as adversidades da sua atividade laboral, muitas vezes passando por cima das normas e regras de segurança, no intuito de atingir as metas de produção. O não cumprimento do prescrito em termos de segurança ou a omissão de um acidente resultam em modalidades diversas de penalidades que se estendem desde advertência verbal até os casos mais extremos, a demissão. O sofrimento surge para o trabalhador quando se vê impossibilitado de lançar mão de sua expertise e vive a punição como não reconhecimento pelo seu trabalho, pelo não engajamento e não envolvimento com a empresa.

Apesar de todo o discurso sobre autonomia, maior liberdade, possibilidade de participação através de CIPA e CCQ’s, a Gestão da Segurança e Saúde Ocupacional da empresa é realizada por gestores e técnicos que, em última instância, detém o conhecimento e o poder de decisão e de demissão, com nítida exclusão dos trabalhadores.

O adoecimento em sua relação com o trabalho se evidencia quando já não é possível para o trabalhador manter-se na linha produtiva. O sofrimento advindo do adoecer não somente resulta da impossibilidade de trabalhar, mas é fruto da organização do trabalho que revela um sentido estranho ao trabalhador. Quando adoecido não é produtivo, deixa de ser trabalhador. O que também é vivenciado pelo sujeito como falta de reconhecimento por sua dedicação e empenho.

A empresa investe em marketing interno e externo cuja tônica é autovalorização que se sustenta no rol de certificações de qualidade. O discurso que enfatiza o próprio valor da empresa ambiciona gerar nos trabalhadores o desejo de nela trabalhar ou nela permanecer. O que se associa à necessidade de trabalho, mas que a partir desta se amplia, pois ainda hoje trabalhar em uma grande empresa significa adquirir um status, e aqueles que o conseguem, passam a compor uma espécie de elite operária do Estado. Entretanto, o cotidiano dos adoecidos reflete a distância entre a empresa fetiche e o trabalho real suscitando nos trabalhadores decepção, revolta e tristeza. O modelo abraçado contribui para a negação dos acidentes de trabalho ou frente a sua obviedade, tende a culpabilização do trabalhador que se vê à deriva de qualquer direito trabalhista e frente à possibilidade de demissão.

Inacessível à sociedade como de fato é, amparada pela imagem auto construída, a empresa se apresenta como expressão da possibilidade de desenvolvimento exitoso para uma «região inóspita e sem tradição industrial», como afirmam seus gestores. Ela serve como modelo de «empreendimento de sucesso para toda a região» e para outras empresas pautadas no discurso da responsabilidade social.

Por sua vez, a ação do Estado em que pese os avanços no âmbito da Saúde e em especial da Saúde do Trabalhador apresenta muitas deficiências para garantir o cumprimento da legislação. Minimamente, o Estado garante os direitos previdenciários, de assistência e reabilitação, sem avançar nas políticas e ações de prevenção.

Marx demonstra como o homem na sociedade capitalista ao produzir coisas (mercadorias) cria relações sociais coisificadas e é dominado pela própria mercadoria. Na sua relação metabólica com a Natureza, o homem a transforma, mas ao mesmo tempo transforma a si mesmo. No mercado, o capitalista compra tudo o que é necessário a um processo de trabalho (meios de produção e força de trabalho), por isto a força de trabalho deixa de pertencer ao trabalhador no momento que a vende para o dono do capital, para tornar-se consumo do proprietário. Desta feita, o processo de trabalho pode ser entendido como «um processo entre coisas que o capitalista comprou, entre coisas que lhe pertencem» (Marx, 1983:154).

No final da década de sessenta, o estudo realizado por Berlinguer (1983) junto aos trabalhadores italianos do setor fabril refere seus sentimentos de indignação e raiva frente ao acidentamento/adoecimento. Ele mostra a consciência desses trabalhadores de serem explorados pelo capital, retratando as bases do movimento operário italiano.

Cinquenta anos depois, no contexto da reestruturação produtiva na Amazônia, observou-se, em variadas situações, como os acidentes de trabalho são negados pela organização, pelo Estado e muitas das vezes pelo próprio operário. O acidentamento/adoecimento do trabalhador macula a imagem da empresa e revela a fragilidade do seu discurso de «responsabilidade social»; traz ônus aos cofres do Estado que cada vez mais devem pagar os benefícios e aposentadorias aos acidentados e adoecidos, o que nem sempre ocorre, expondo de forma patente à vulnerabilidade social do trabalhador. Mais que tudo, lança luzes sobre o embate capital versus trabalho presente no espaço da produção e no seio da sociedade, ainda revela a força de trabalho como mercadoria ou como peça da engrenagem do processo produtivo, passível de reposição ao menor sinal de falha.

Por outra via, voltando-se a dimensão subjetiva da relação do trabalhador com o seu trabalho, o labor não suscita só uma experiência patológica, o sofrimento pode ser o ponto de partida no intuito da ação sobre o mundo. Segundo Dejours (2004:28) «o sofrimento é ao mesmo tempo, impressão subjetiva do mundo e origem do movimento de conquista do mundo».

Revelar o sofrimento assumindo um compromisso com a verdade é a proposição da Psicodinâmica do Trabalho, pois recusar o acesso ao drama vivenciado é negar a possibilidade posterior de ação, o que contribui para a manutenção do sofrimento (Dejours, 2004). A proposta deste autor tem por finalidade o significado das condutas humanas e não expõe, diretamente, ações, pois elas devem ser de autoria dos próprios trabalhadores.

Para Dejours (2004), não basta trocar o poder de mãos, haja vista, que isso não resolve a questão do sofrimento; a complexidade e a racionalidade das estratégias defensivas contra o sofrimento no trabalho são irredutíveis às estratégias dos atores. Uma das questões fundamentais apresentadas pela Psicodinâmica do Trabalho é a concepção de ação que só é racional se considerar o papel da subjetividade no trabalho e dela se alimentar. A ação coletiva é racional se tiver como objetivo não somente a luta contra a injustiça, mas a busca da celebração da vida. Nas ações voltadas para a melhoria da organização do trabalho incorpora-se, a luta por um trabalho digno, a luta pela saúde, a luta pela vida. 

NOTAS:

1 Norma de padrão internacional que propõe especificações para Sistemas de Gestão em Segurança e Saúde Ocupacional.

2 A CIST-Bel, atuando na esfera do controle social, é uma instância assessora do Conselho Municipal de Saúde para assuntos no âmbito da saúde do trabalhador.

3 De acordo com a legislação brasileira, o acidente de trabalho é todo aquele que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados especiais, provocando lesão corporal ou perturbação funcional, permanente ou temporária, que resulte em morte, perda ou redução de capacidade para o trabalho. Ainda a doença profissional e a doença do trabalho são consideradas acidentes de trabalho (ANUÁRIO ESTATÍSTICO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, 2008).

4 Comunicação de Acidente de Trabalho é um instrumento legal que permite medidas não só do ponto de vista previdenciário, estatístico e epidemiológico, mas também trabalhista e social.

5 Durante o trabalho de pesquisa foram entrevistados 10 representantes da empresa. Outros detalhes encontram-se na tese de doutorado: O Sofrimento Negado: Trabalho, Saúde/Doença, Prazer e Sofrimento dos Trabalhadores do Alumínio do Pará-Brasil. Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, Belém, 2011.

6 O método do 5S é uma ferramenta da Gestão da Qualidade Total que preconiza a possibilidade de eliminar o desperdício a partir de campanhas para organizar o ambiente de trabalho, arrumá-lo, conservá-lo, mantendo-o limpo. Está pautado em cinco termos da língua japonesa: Seiri (liberação de áreas ou descarte), Seiton (arrumação ou organização), Seiso (limpeza), Seiketsu (higiene, asseio) e Shitsuke (disciplina) (Heloani, 2003).

7 Os nomes utilizados no texto são fictícios no intuito de resguardar a identificação dos participantes da pesquisa.

8 Christophe Dejours toma os conceitos de trabalho prescrito e trabalho real do campo da ergonomia, o primeiro, referindo-se à prescrição do «como fazer a atividade», definido seja pela gerência, seja por normas institucionais. Um exemplo seria a nota técnica de procedimentos. O segundo, por sua vez, remeteria aos limites do prescrito e à variabilidade presente nos processos de trabalho, o conceito permite pensar a execução da tarefa propriamente dita pelo trabalhador, caracterizada por acesso à informação, processos cognitivos (memória, atenção, tomada de decisão) e ações. É a atividade realizada.

9 (PRO) Procedimento de Risco Operacional.

10 Pendência é a expressão utilizada na empresa para fazer referência ao trabalho que deveria ter sido realizado por determinada equipe de trabalho no turno, mas que devido a situações imprevistas, como a quebra de um maquinário, por exemplo, não foi possível de ser executado, ficando pendente para a equipe de trabalho que assumirá o turno subsequente.

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