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versión impresa ISSN 0378-1844

INCI v.30 n.9 Caracas sep. 2005

 

CONHECIMENTO LOCAL E USO DO SOLO: UMA ABORDAGEM ETNOPEDOLÓGICA

 

Ângelo Giuseppe Chaves Alves 

Ângelo Giuseppe Chaves Alves. Engenheiro Agrônomo, Universidade Federal de Paraíba, Brasil. Mestre em Ciência do Solo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Doutor em Ecologia e Recursos Naturais, Universidade Federal de São Carlos, Brasil. Professor, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil. Endereço: Rua Manoel de Medeiros, s/n, Dois Irmãos. CEP 52171-900, Recife, Pernambuco, Brasil. e-mail: agcalves@ufrpe.br

Resumen

Muchas sociedades campesinas e indígenas han desarrollado sus propias estrategias en el uso de suelos, con escasa o ninguna influencia de los organismos oficiales de investigación o comunicación rural. Las técnicas de manejo utilizadas por estas sociedades están predominantemente basadas en sistemas de conocimiento local. La etnoedafología se dedica a estudiar las interfases entre la especie humana, los suelos y otros componentes de los ecosistemas. La mayoría de estos estudios están relacionados con la agricultura, prestando poca atención a otras formas de uso. En este artículo, las relaciones entre la especie humana y los suelos son discutidas desde una perspectiva etnoedafológica, poniendo énfasis en su utilización en prácticas no-agricolas, principalmente en la alfarería. En un nivel mundial, se ha demostrado la importáncia de los sistemas locales de conocimiento de los suelos y materiales minerales, no solamente con respecto a la agricultura, sino también a otros dominios del comportamiento humano, tales como la artesanía, la pesca, el tratamiento de enfermedades, la construcción de viviendas, la minería, la pintura corporal ritual, la producción de sal, la geofagia y otros. La gran diversidad de prácticas y conocimientos sobre el suelo entre las poblaciones rurales debe ser considerada e incorporada a los estudios edafológicos, en una perspectiva interdisciplinaria. La investigación etnoedafológica en distintos ambientes puede contribuir al desarrollo de la ciencia formal, asi como a la comprensión y valoración adecuada del saber local sobre suelos.

Summary

Many peasant and indigenous societies have created their own soil use strategies, having little or no contact with official research and rural communication agencies. Management techniques used by these societies are mainly based on local knowledge systems. Ethnopedology comprises the study of the interfaces among the human species, the soils, and the other constituents of ecosystems. Ethnopedological studies have been devoted mainly to agriculture, paying little attention to other aspects of soil use. In this paper, the relations between soils and the human species are discussed under an ethnopedological approach, with emphasis on non-agricultural soil use practices, such as pottery making. Worldwide research has demonstrated the existence and importance of local knowledge systems about soils and mineral materials, not only related to agriculture, including other behavioral realms, such as craftsmanship, fisheries, healing practices, building construction, mining, ritual body painting, salt production, and geophagy, among others. The high diversity of soil knowledge and practices that exist among rural people should be considered and incorporated in formal soil studies, through an interdisciplinary perspective. Ethnopedological studies in different environments could be an aid to the advancement of formal soil knowledge, also giving an opportunity to understanding and valuing local soil knowledge.

Resumo

Muitas populações camponesas e indígenas desenvolveram suas próprias estratégias de utilização dos solos, tendo pouco ou nenhum contato com órgãos oficiais de pesquisa e comunicação rural. Isto permite pressupor a existência de conhecimentos pedológicos locais, subjacentes às práticas de manejo adotadas por essas populações. As interfaces existentes entre os solos, a espécie humana e os outros componentes dos ecossistemas constituem o objeto de estudo da etnopedologia. Os estudos etnopedológicos têm enfocado, prioritariamente, o uso agrícola, dando pouca atenção a outros campos de comportamento. Neste artigo, as relações entre os solos e a espécie humana são discutidas desde um ponto de vista etnopedológico, dando ênfase às práticas não-agrícolas, especialmente o seu uso como matéria-prima para a confecção de cerâmica artesanal. Pesquisas em nível mundial têm mostrado a importância dos conhecimentos locais sobre solos e materiais minerais, não somente em relação ao uso agrícola, mas também a outros campos de comportamento como o artesanato, a pesca, o tratamento de enfermidades, a construção de residências, a mineração de ouro e platina, a pintura corporal para rituais e a extração de sal, bem como a própria alimentação humana (geofagia), entre outros. A rica variedade de conhecimentos e usos de solos entre os povos rurais deve ser considerada e incorporada nos estudos pedológicos formais, numa perspectiva interdisciplinar. A realização de estudos etnopedológicos em diferentes contextos pode contribuir para o avanço do conhecimento pedológico formal e para uma melhor compreensão e valorização do saber local.

Palavras chave / Artesanato / Etnopedologia / Saber Local /

Recebido: 22/03/2005. Modificado: 14/07/2005. Aceitado: 20/07/2005.

Introdução

Muitas populações camponesas e indígenas desenvolveram suas próprias estratégias de utilização dos solos, com pouco contato com os sistemas oficiais de pesquisa e comunicação rural. Isto permite pressupor a existência de conhecimentos pedológicos locais, subjacentes às práticas de manejo adotadas por essas populações. Esses conhecimentos locais geralmente se transmitem através das gerações pela linguagem oral e costumam estar associados às diferentes visões de mundo (cosmologias) que permeiam os grupos culturais (Toledo, 2000).

O conhecimento sistemático de solos e sua relação com a utilização agrícola não é criação da moderna ciência ocidental. Há mais de 4000 ou 5000 anos, a civilização chinesa já tinha um sistema utilitário de classificação de terras, distinguindo-as em função da produtividade. Esse sistema era então utilizado para definir o tamanho das parcelas individuais e os tributos devidos ao governo (Simonson, 1968). Infelizmente, o patrimônio cultural constituído pelo conhecimento pedológico local tem sido desconsiderado na maioria dos programas de pesquisa e desenvolvimento relacionados aos solos.

A abordagem etnopedológica pode contribuir para uma articulação e integração entre os saberes pedológicos formais (compartilhados por pesquisadores com instrução formal em ciência do solo) e locais (característicos das populações rurais, sejam elas camponesas, indígenas ou outras). Denomina-se "etnopedologia" o conjunto de estudos interdisciplinares dedicados ao entendimento das interfaces existentes entre os solos, a espécie humana e os outros componentes dos ecossistemas (Alves e Marques, 2004).

Os estudos etnopedológicos têm enfocado, prioritariamente, o uso agrícola dos solos, dando pouca atenção a outros campos de comportamento. Relatos aprofundados sobre a utilização do solo para fins não-agrícolas são raros na literatura pedológica e etnopedológica, embora haja um reconhecimento geral de que os camponeses e indígenas usam solos em uma extensa gama atividades, desde a pintura corporal (Ollier et al., 1971) à geofagia (Browman e Gundersen, 1993). Essa ênfase sobre o uso agrícola tem levado a uma descrição mais detalhada do conhecimento local sobre a camada arável, embora o saber pedológico dos povos rurais não se restrinja à superfície do solo (Alves, 2004; Alves et al., 2005). Neste texto, as relações entre os solos e a espécie humana são abordadas desde um ponto de vista etnopedológico, dando ênfase às práticas não-agrícolas, especialmente o seu uso como matéria-prima para a confecção de cerâmica artesanal.

Etnopedologia e agricultura

Desde a realização dos primeiros estudos de natureza explicitamente etnoecológica e etnopedológica, observa-se uma conexão entre etnopedologia e agricultura. Neste sentido, Conklin (1954) estudou a "classificação do solo entre os Hanunóo e suas idéias sobre aptidão dos solos para diversos cultivos" e encontrou "boas correlações" entre os conhecimentos pedológicos dos Hanunóo (nas Filipinas) e as informações provenientes de análises químicas de amostras de solos. Já Williams e Ortiz-Solorio (1981) observaram que as categorias de solos conhecidas por um grupo de agricultores e pecuaristas mexicanos representavam descontinuidades mensuráveis e estatisticamente válidas na superfície do solo, embora os solos representassem, para esses camponeses, indivíduos bidimensionais, contrastando assim com a visão do solo como corpo tridimensional, comumente aceita na pedologia formal.

Em estudos realizados com moradores de uma fazenda no Ceará, Johnson (1971; 1972; 1974) detectou oito categorias locais de solos (terras) e observou uma "considerável" correspondência entre o conhecimento (dados cognitivos) das terras e a sua utilização agrícola (dados comportamentais) pelos camponeses. Ainda no Ceará, destaca-se o trabalho desenvolvido por Queiroz (1985) e Queiroz e Norton (1992). Através de análises estatísticas multivariadas, feitas a partir de dados morfológicos, esses autores encontraram semelhanças entre as categorias de solos reconhecidas pelos agricultores locais e aquelas indicadas por outros autores em levantamentos pedológicos formais na região. Outra pesquisa etnopedológica realizada no Nordeste Brasileiro (Bandeira, 1996) refere-se ao conhecimento dos Pankararé do Raso da Catarina, os quais costumavam dividir as terras em sub-categorias (e.g. terras fracas/terras fortes) de acordo com a capacidade do solo em servir como suporte adequado ao desenvolvimento de plantas. Por sua vez, Moran (1977; 1981; 1990) realizou estudos de "etnoagronomia", comparando os conhecimentos pedológicos dos antigos caboclos com os dos novos colonos provenientes do sul do Brasil, durante a implantação de assentamentos agrícolas na Amazônia. Por meio de análises químicas, demonstrou que os solos escolhidos por caboclos tinham melhores condições gerais de fertilidade, em comparação às áreas escolhidas por novos colonos.

Conhecimento e uso do solo para fins não-agrícolas por populações rurais

Desde os tempos pré-históricos, a agricultura tem contribuído para a fixação das populações humanas ao ambiente rural, mas geralmente se faz acompanhar de outras práticas, pois o uso múltiplo dos solos é uma característica comum aos camponeses, indígenas e outras populações rurais. Pesquisas etnopedológicas têm mostrado a existência de conhecimentos locais sobre solos e materiais minerais, não somente em relação ao uso agrícola, mas também a outros campos de comportamento como o artesanato (Arnold, 1971; Melo, 1983), a pesca e o tratamento de enfermidades humanas (Marques, 2001), as construções (Arnold, 1971; Marques, 2001), a mineração de ouro e platina (West, 1952), a pintura corporal para rituais e a extração de sal (Ollier et al., 1971; Tabor et al., 1990), bem como a própria alimentação humana (Browman e Gundersen, 1993), entre outros.

Como exemplo de uso múltiplo de materiais de solo, destaca-se a descrição feita por Marques (2001), em estudo que realizou entre os brejeiros na Várzea da Marituba (Alagoas), onde foram registradas diversas formas de uso dos solos. Segundo ele, "barro, pedras, (os xexos), lama e areia constituem-se em elementos manipuláveis pelo brejeiro maritubano. Do barro, fazem-se casas – as casas de taipa, antigamente com barro pintadas. Quanto aos xexos, eles são utilizados tanto para atividades relacionadas com a pesca quanto medicinalmente. Da lama, elemento conexivo outrora forte, há uma conexão residual para tingimentos e, com areia, além de utilizá-la em construções, o brejeiro atrai peixes."

O conhecimento e uso do solo como matéria prima para construção de prédios por camponeses foi registrado também por Arnold (1971), Alves et al., (2005) e Williams (1972). Esta última autora investigou um material extraído de horizonte petrocálcico, conhecido vulgarmente no México como tepetate, usado em construções e encontrado em solos que ela classificou como Ustocrepts e Ustorthents, de acordo com a "Soil Taxonomy" (Soil Survey Staff, 1999).

Entre os Baruya (um povo da Nova Guiné), Ollier et al. (1971) também observaram o uso de solos para diversos fins, tais como pigmentação do corpo em rituais e obtenção de sal para alimentação humana, além do cultivo de plantas. Quanto ao uso de solos diretamente na alimentação humana, Browman e Gundersen (1993) investigaram 27 materiais de solo reconhecidos de acordo com o saber local, e que integram a dieta de povos andinos desde os tempos pré-colombianos. Os autores consideram que essas "terras comestíveis" atuam fornecendo nutrientes e reduzindo os efeitos de toxinas naturalmente presentes em algumas variedades locais de batata, aumentando a palatabilidade dessas plantas aos humanos. Quanto à mineralogia da fração argila, os materiais mais freqüentemente consumidos naquele contexto, eram constituídos por esmectitas, ilitas e caulinitas. Segundo outras fontes citadas no mesmo estudo, diversas outras espécies de animais também apresentam comportamento de geofagia. A ingestão de solos por humanos pode também ter conotações terapêuticas e/ou religiosas, mas estes são temas raramente abordados na literatura científica.

As atividades de mineração conduzidas em pequena escala por camponeses, em diversas partes do mundo, também se baseiam em conhecimentos detidos por essas populações a respeito dos solos, rochas e minerais. Neste sentido, West (1952) mostrou a persistência de técnicas pré-hispânicas de mineração de ouro na Colômbia, registrando inclusive populações camponesas que alternavam a mineração com a agricultura e a pesca, ao longo do ano.

O uso e conhecimento de solos para fins artesanais

Entre as formas artesanais de uso dos solos, destaca-se a produção de cerâmica. Trata-se de um hábito bastante antigo, que é visto por arqueólogos como indicativo da sedentarização humana em determinados ambientes pré-históricos. Com a produção sistemática de alimentos, tornou-se necessário o uso de recipientes para acondicionar os excedentes e cozinhar.

Em um estudo feito por Arnold (1971) identificaram-se diversas categorias de materiais minerais reconhecidos e utilizados por camponeses mexicanos na confecção de vasos (Tabela I), evidenciando o elevado nível de detalhe e refinamento que pode estar presente no saber-fazer dos camponeses em relação aos materiais que fazem parte de sua vida prática. Os ceramistas consultados por Arnold (1971) usavam três critérios práticos para diferenciar uma boa argila (K’at) para cerâmica: o local de origem (teria que ser extraída de um determinado local chamado Yo K’at); o sabor (teria que ser considerada salgada); as mudanças que o material apresentava quando exposto à secagem ao sol (teria que permanecer sem rachaduras ou quebraduras).

Entre as populações de língua portuguesa e espanhola, o material usado para dar plasticidade à pasta cerâmica recebe, geralmente, o nome vulgar de barro, ou variantes como barro de louça (Queiroz e Norton, 1992) e barro de loiça (Alves et al., 2005). Na província de Granada (Andaluzia, Espanha), Querol-Martínez (1993) registrou que os ceramistas artesanais costumam falar em barro e não em argila para designar o material com que trabalham.

Ainda no México, Williams (1982) observou que alguns camponeses em Tepetlaoztoc classificavam solos em quatro táxons genéricos, entre eles a "tierra negra, também chamada barro (argila)". Articulando registros pictóricos (glifos) do século XVI com análises laboratoriais de solos, fotos aéreas e entrevistas que fez com camponeses bilíngues (Espanhol-Nahuatl) da mesma região, essa autora demonstrou que o termo barro, como usado naquele contexto, correspondia à categoria de solos que os astecas denominavam tezoquitl (Figura 1). No Dicionário da Língua Nahuatl Clássica, Wimmer (2004) registrou tezoquitl como "terra argilosa que serve para fazer vasilhas".

Williams (1975), observou também que, entre os Astecas havia denominações utilitárias que se referiam explicitamente ao uso do solo em cerâmica, tais como contlalli ("argila para fazer jarros", derivada de comitl, jarro, e tlalli, um tipo de argila) e similares como comatlalli ("argila para fazer assadeiras") e caxtlalli ("argila para fazer tigelas"). Entre os documentos pictóricos que contêm glifos usados pelos Astecas, destaca-se o Fragmento VIII de Humboldt (Seler, 1904), que apresenta alguns campos agrícolas identificados por um símbolo composto de uma árvore (quauitl) sobre um jarro de cerâmica (comitl), com uma fileira de dentes (tlantli) subjacente. A expressão Nahuatl que corresponde a esse glifo é quauhtlalli, contlalli (Figura 2). Conforme o Códice Florentino, elaborado por Frei Bernardino de Sahagún, quauhtlalli significa solo de floresta, ou resíduos de carvalho em decomposição, ou ainda húmus, enquanto contlalli é argila para confecção de cerâmica utilitária (comunicação pessoal de Barbara J. Williams). O Códice Florentino é um compêndio em 12 volumes de história e etnografia dos grupos de língua Nahuatl (incluindo os Astecas) no Vale do México. Foi escrito em meados do século XVI e descreve os estilos de vida encontrados no período pré-hispânico e no início da colonização européia (Williams, 1972).

Outro material de solo com denominação utilitária relacionada à cerâmica é o barro de loiça. Em pesquisa recente (Alves, 2004; Alves et al., (2005), foi observado o uso deste termo junto a um grupo de artesãos camponeses no Agreste da Paraíba, designando um material extraído do horizonte Bt, em Planossolos afetados por sódio, e que é empregado localmente na confecção de cerâmica artesanal. Trata-se de um material de textura argilosa, que geralmente apresenta-se muito plástico, muito pegajoso e com coloração brunada (entre 10YR 4/3 e 10YR 5/4), podendo eventualmente ser acinzentado (5Y 4/1), quando vértico. Do ponto de vista químico, apresenta caráter hipereutrófico, com destaque para os valores relativamente altos de saturação por sódio nos sítios de troca (entre 9 e 21%). A presença de fendas no horizonte Bt era o indicativo usado pelos ceramistas, no caso em questão, para reconhecer visualmente a seção vertical do solo em que se poderia encontrar barro adequado para confecção de vasos cerâmicos. A experiência sensorial era empregada pelos artesãos locais na avaliação da qualidade do barro de loiça. Dessa forma, distinguiam-se as cores e a presença de fendas (visão); a consistência (tato), e a salinidade (paladar). Neste sentido, Barrera-Bassols e Zinck (2003) mostraram que as distinções entre solos feitas por camponeses e outras populações rurais são eminentemente morfológicas (e, portanto, baseadas em experiência sensorial), sendo a cor e a textura as variáveis mais comumente utilizadas nesse contexto, em nível mundial. A importância dada pelos artesãos à consistência e à salinidade do barro de loiça reflete, provavelmente, os efeitos que essas duas características podem ter na aptidão de determinados materiais de solo para a confecção de vasos (Alves, 2004; Alves et al., 2005).

Ainda que muito escassas, encontram-se na literatura pedológica referências ao termo barro de loiça e similares. O registro mais detalhado e mais antigo parece ser o de Queiroz (1985), que relatou o uso da denominação barro de louça para Planossolos afetados por sódio no Vale do Acaraú, Ceará:

"Solos com um argipã extremamente duro e relativamente impermeável, sob uma camada arenosa de espessura variável. [...] Localmente, eles são conhecidos como terra branca (white earth), em referência à superfície arenosa e de cor clara, ou barro de louça (ceramic clay), em referência ao argipã. [...] A estreita associação da superfície clara e arenosa com o argipã sugere que eles sejam geneticamente relacionados".

Nesse caso, barro de louça aparece como um nome geral para uma categoria local de solos, e também como uma camada subsuperficial nesses mesmos solos. Há semelhança entre o barro de loiça do Agreste Paraibano (Alves et al., 2005) e o barro de louça do Vale do Acaraú (Queiroz, 1985), pois ambos referem-se a Planossolos afetados por sódio, com ênfase no horizonte Bt.

Ainda no Agreste Paraibano, Petersen (1995) observou solos com "um horizonte B localmente denominado de barro-de-loiça (B hidromórfico)". Note-se que, nesse caso, barro de loiça denomina um horizonte e não um solo. Embora tenham feito referência aos termos barro de louça e barro de loiça, que indicam um uso artesanal, Queiroz (1985) e Petersen (1995) não discutiram a utilização desses solos como recurso cerâmico.

Outro nome de solo relacionado a cerâmica é Kankab-Kat, termo maia que significa aproximadamente "terra vermelha dos ceramistas". No século passado, esse termo foi adotado também nos meios acadêmicos para denominar uma série de solos vermelhos, na Península de Yucatán, México. Neste sentido, Stevens (1964) afirma que o estudo sistemático de solos naquela região foi iniciado pelo próprio povo Maia, que desenvolveu uma nomenclatura específica que sobrevive até o presente entre os agricultores de Yucatán. Levando em consideração que as distinções de solos feitas pelos camponeses e indígenas se aplicam ao seu ambiente mais próximo, outros autores (Tabor, 1992; Krasilnikov e Tabor, 2003) também consideraram que o saber local pode servir como subsídio para o estabelecimento de séries nos sistemas oficiais de classificação de solos, bem como para facilitar a comunicação dos agentes de pesquisa e extensão com as populações rurais.

Um material de solo freqüentemente usado como pigmento para vasos cerâmicos é o tauá, também chamado toá e taguá. Estes três termos parecem ter a mesma origem etimológica, derivando do Tupi ta’gwa (Houaiss e Villar, 2001), mas há variações semânticas regionais e locais nesse campo. Lima (1998) reconheceu toá ou tauá como "pigmento de origem mineral, de cor avermelhada, extraído do solo e que, no Brasil, é bastante empregado na decoração dos objetos cerâmicos de procedência indígena e popular". No Ceará, Girão (1967) registrou tauá como "barro de cor branco-amarelada que, além de outras aplicações, serve para cobrir a cerâmica", enquanto na Paraíba tauá pode ser "pedra de tonalidade vermelha devido à presença de óxidos de ferro, da qual se extrai uma tinta de cor ocre" (Almeida, 1984). Também na Paraíba, Alves (2004) registrou toá como petrolintita e mostrou que se tratava de um material usado e conhecido por ceramistas artesanais para tingir vasos cerâmicos.

A não ser por algumas exceções como os trabalhos de Arnold (1971) e Alves et al., (2005), o uso artesanal do solo é tratado de forma marginal na literatura pedológica e etnopedológica, raramente ocupando mais que um ou dois parágrafos, como se observa em Weinstock (1984), Barrera-Bassols (1988), Tabor et al. (1990) e Martin (1993). O trabalho de Tabor et al. (1990), por exemplo contém as seguintes observações sobre alguns solos usados e conhecidos pelos agricultores na Província Oriental do Quênia:

"A utilização de sistemas locais de classificação de terras pode ser uma maneira politicamente aceitável de avaliar adequadamente a aptidão das terras. O sistema local pode ser usado para identificar terras de alto valor, que deveriam manter-se sob domínio público, como é o caso das pequenas áreas de ocorrência de um solo denominado yumba, usado para manufatura de vasos de barro, ou do solo kithaayo, que serve como fonte de sal para o gado e animais silvestres [Grifo nosso]. Em Mitunguu, por exemplo, uma determinada área de solos yumba foi considerada de tão alto valor na comunidade local para a feitura de vasos de barro queimado, que não se permitiu a ninguém a posse isolada dessa área. A compreensão da classificação local das terras pode ajudar a evitar conflitos desnecessários e identificar conflitos potenciais."

Além da cerâmica, uma curiosa aplicação artesanal de material mineral é a elaboração de "garrafas de areia", comumente encontradas no Nordeste Brasileiro, especialmente no Rio Grande do Norte. São recipientes de vidro preenchidos com materiais arenosos de diferentes cores, formando desenhos. Entre as artesãs de Tibau (RN), algumas cores são obtidas a partir de tintas industriais, mas outras são provenientes de diferentes categorias de "areias" obtidas nas dunas pelas artesãs, segundo relato de Melo (1983).

Sugere-se que a rica variedade de conhecimentos e usos de solos entre os povos rurais, parcialmente demonstrada neste texto, pode ser incluída como subsídio para os estudos pedológicos formais, numa perspectiva interdisciplinar. Para tanto, é necessário que os cientistas de solo tenham uma colaboração mais freqüente e intensa com pesquisadores de outras áreas (inclusive ciências sociais), e também com as populações rurais, de modo que a diversidade cultural possa ser incorporada nas práticas de ensino e pesquisa relacionados aos solos. Assim, a realização de estudos etnopedológicos em diferentes contextos pode contribuir para o avanço do conhecimento pedológico formal e para uma melhor compreensão e valorização do saber local.

Agradecimentos

À Barbara J. Williams (University of Wisconsin) pelas informações e sugestões sobre a escrita pictórica mexicana.

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