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Cuadernos del Cendes

versión impresa ISSN 1012-2508versión On-line ISSN 2443-468X

CDC v.22 n.59 Caracas mayo 2005

 

O negócio da água: debatendo experiências recentes de concessão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário a empresas privadas no Brasil


MARCELO COUNTINHO VARGAS

Resumen

O texto analisa o papel potencial que a iniciativa privada pode desempenhar atualmente no abastecimento de água e no esgotamento sanitário das cidades brasileiras, podendo tanto contribuir para melhorar a qualidade e expandir a oferta dos serviços, como para aumentar a exclusão dos mais pobres, à luz de três estudos de caso sobre «privatizações», ocorridas nesse setor na região sudeste, mediante a concessão dos serviços a grupos privados nacionais e estrangeiros. Busca-se analisar as conseqüências da privatização sobre a qualidade, o alcance social, os custos e o impacto ambiental destes serviços.

Palabras clave

Abastecimento de água e esgotamento sanitário / Operação privada e regulação pública / Estudos de caso

Abstract

This paper seeks to analyse the role private sector may play on water and sewerage services (WSS) in Brazilian cities, rather contributing to improve their quality and social reach or to increase the exclusion of the urban poor. It focuses on three case studies about the «privatization» of this sector in seven southeastern municipalities which gave their services in concession to domestic and foreign private operators. The case studies try to analyse the consequences of those contracts to the social, economic and environmental sustainability of such services, as well as to their democratic accountability and regulation.

Key words

Water and sewerage services / Private operation and public regulation / Case studies.

RECIBIDO: MAYO 2005      ACEPTADO: AGOSTO 2005

    O objetivo deste trabalho é contribuir para o debate atual sobre o papel da iniciativa privada na prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário nos países em desenvolvimento, buscando superar a presente polarização entre posições político-ideológicas radicalmente contrárias ou radicalmente favoráveis a toda forma de «privatização» do setor. Trata-se de buscar uma avaliação isenta tanto dos riscos como das oportunidades potenciais trazidas pelo envolvimento privado na operação de tais serviços em sociedades marcadas por ampla desigualdade e exclusão social, não apenas à luz de algumas considerações teóricas historicamente fundamentadas, mas, sobretudo, por intermédio da análise empírica de três estudos de caso desenvolvidos sob minha coordenação em um pequeno conjunto de cidades do sudeste brasileiro, no âmbito do projeto Prinwass. Realizados entre novembro de 2001 e junho de 2003, tais estudos abrangeram os seguintes municípios: 1) Limeira, situado no interior do Estado de São Paulo; 2) Niterói, localizado na região metropolitana do Rio de Janeiro; e 3) Cabo Frio, Arraial do Cabo, Búzios, Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia, municípios pertencentes à micro-região dos Lagos que se associaram entre si e ao Estado do Rio de Janeiro, buscando uma solução conjunta para o saneamento da região.
    Em todos os casos acima foram firmados contratos de concessão entre o poder público e companhias privadas, que passaram a se encarregar de operar, manter, expandir e melhorar a qualidade dos serviços nas respectivas cidades, sendo remuneradas pelas tarifas cobradas dos usuários, de acordo com metas e disposições contratuais pré-estabelecidas.1 Acredita-se que uma análise de tais experiências no contexto brasileiro possa iluminar alguns aspectos obscuros do debate nacional e mundial sobre os riscos e oportunidades do envolvimento privado neste setor, especialmente nos países em desenvolvimento.
    O texto divide-se em cinco partes. Na primeira, discutem-se as perspectivas de mudança no modelo de organização institucional deste setor sob o governo Lula, que já tomou algumas iniciativas relevantes nesta área através da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (SNSA), criada no âmbito do novo Ministério das Cidades. Não se trata, neste tópico, de analisar o conteúdo específico das medidas propostas para superar a crise do modelo vigente (comentadas sucintamente na parte final), mas antes de situar as linhas gerais do debate em torno do novo modelo proposto e do papel potencial da iniciativa privada no seio deste. Na segunda parte, igualmente focada no plano nacional, busca-se descrever brevemente a organização institucional e administrativa dos serviços de água e esgotamento sanitário prevalecente hoje no país, incluindo os respectivos indicadores de cobertura, as necessidades de investimento para se atingirem as metas do milênio estabelecidas para o setor pela ONU (i.e.: a universalização dos serviços até 2025), além da repartição do «mercado» entre operadores públicos e privados, recordando as origens históricas da situação atual. Na terceira, à luz de análises extraídas da literatura especializada e dos resultados mais amplos do projeto Prinwass, levantam-se questões relativas aos principais riscos e oportunidades que podem surgir a priori do envolvimento privado na operação destes serviços. Na quarta parte, apresentam-se a metodologia e os principais resultados dos estudos de caso, cuja análise (devidamente ponderada por considerações teóricas e uma avaliação panorâmica de algumas experiências internacionais recentes) serve de base para as reflexões e recomendações propostas na parte final.

Mudança política e reordenamento institucional do saneamento urbano: novas diretrizes em debate2

   Depois de passar por quase vinte anos de gestão estatal centralizada, tendo enfrentado uma profunda crise financeira e institucional nos anos oitenta do século passado, o modelo de organização institucional dos serviços de saneamento que ainda prevalece no Brasil, implantado pelos militares durante o último regime autoritário (1964 a 1985), foi submetido a um processo de reforma gradual na década de 1990, através de medidas visando à descentralização, a «privatização» e o reordenamento do aparato de regulação do setor. As mudanças em curso, fomentadas no governo do presidente Cardoso (1995 a 2002), foram caracterizadas por mim como a transição de um modelo de serviço público estatal centralizado para outro descentralizado e «flexível», com prestadores públicos e privados disputando um mercado ao mesmo tempo «aberto» e «regulado» (Vargas, 2002).
    Porém, o alcance limitado das mudanças pró-mercado instituídas na área de saneamento sob o governo Cardoso, em comparação com a ampla reestruturação promovida nos setores de eletricidade e telefonia, reflete não apenas o ordenamento constitucional confuso prevalecente nesta matéria (como se discute na próxima seção), mas também a forte resistência de diversos segmentos com interesses diretos ou indiretos na área, que se opõem a este tipo de política setorial: trabalhadores e dirigentes das companhias estaduais e dos serviços municipais de saneamento; lideranças de associações técnicas ligadas a esta atividade; além de diversas entidades do «terceiro setor» mobilizadas em defesa da qualidade do meio ambiente, dos direitos do consumidor e do desenvolvimento social do país. Buscando o apoio de forças políticas contrárias às propostas neoliberais (privatização de empresas e serviços públicos, desregulamentação da economia, etc.), tais segmentos se organizaram na Frente Nacional de Saneamento, criada em 1997, que tem se engajado, desde então, em inúmeras campanhas em prol de uma política nacional para o setor baseada na gestão pública desta atividade, cujos serviços são concebidos não como mercadoria, mas antes como um dever do Estado e direito essencial do cidadão.
    Entretanto, a despeito do movimento de resistência à «privatização» deste setor sair fortalecido com a eleição do presidente Lula, com alguns de seus líderes passando a ocupar posições-chave na SNSA/Ministério das Cidades, isso não quer dizer que a «transição para o mercado regulado» tenha sido interrompida, pois constrangimentos econômicos e institucionais examinados adiante impedem a formulação de uma política nacional de saneamento coordenada pelo governo central, cujas fontes de financiamento repousem unicamente sobre recursos públicos.
De fato, há claros sinais de que essa transição vem sendo refreada no plano federal, pois o governo do presidente Lula deixou de apoiar ativamente a privatização, rompendo com a estratégia adotada no governo anterior: asfixiar financeiramente as companhias estaduais e os prestadores municipais de serviços de saneamento, negando-lhes acesso às linhas de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) e da Caixa Econômica Federal (CEF), cujos recursos passaram a ser disponibilizados para financiar concessionárias privadas e novos processos de concessão.3
    Mas há também evidências de posições divergentes sobre este tema na esfera federal: o próprio presidente Lula e seus ministros da área econômica têm demonstrado ser favoráveis ao aumento da participação privada na área de infra-estrutura, inclusive em saneamento, especialmente sob o esquema de Parceria Público-Privada (PPP), recentemente aprovado pelo Congresso Nacional.4 Aliás, mesmo que o apoio à privatização tenha deixado de ser uma diretriz prioritária na agenda federal para este setor, vale lembrar que o financiamento público das concessionárias privadas de saneamento através de recursos do FGTS não foi abolido ou suspenso no governo Lula, pois a Caixa Econômica Federal, no seu orçamento para 2004, foi autorizada a alocar 360 milhões de reais para este fim na linha de crédito FCP/SAN, até mesmo para honrar contratos aprovados já em vigor.
    Em todo caso, apesar das nuances acima, pode-se afirmar que as iniciativas do governo Lula visando à formulação de uma nova Política Nacional de Saneamento tiveram o mérito de deslocar o eixo dos debates da questão do papel da iniciativa privada como eventual protagonista de uma renovação do setor (conforme o ideário neoliberal), para o tema fundamental de qualquer proposta conseqüente de reforma do mesmo: a necessidade de garantir a universalização dos serviços através de regras e estratégias que fortaleçam a cooperação intergovernamental entre Municípios, Estados e União neste campo e, ao mesmo tempo, promovam uma gestão mais democrática e transparente do setor.5 Se essa mudança no eixo do debate me parece correta e positiva, pelas razões que discuto na parte final, temo que essa reorientação possa obscurecer uma discussão da questão fundamental envolvida, a saber: como financiar a universalização dos serviços?
    Neste aspecto, as próprias limitações de investimento demonstradas pela União (governo central), cujo papel tem sido historicamente crucial no financiamento dos serviços de saneamento do país, favorecem o aumento das concessões ao setor privado. Embora a previsão de gastos federais neste setor tenha aumentado consideravelmente na administração Lula, tendo totalizado R$ 5,2 bilhões nos dois primeiros anos de seu mandato, a maior parte desta verba (que inclui a contratação de empréstimos oriundos do FGTS e recursos empenhados no orçamento geral da União) tem permanecido retida ou «contingenciada» para atender ao compromisso fiscal que o governo federal assumiu junto ao FMI de atingir um superávit primário equivalente a 4,25 por cento do PIB nas contas públicas (receita menos despesas, excluído o pagamento de juros sobre a dívida). Assim, considerando apenas os recursos efetivamente liberados para investimento e custeio, os gastos federais em saneamento do governo Lula caem para cerca de 640 milhões no biênio 2003-2004, sendo os menores dos últimos dez anos. De acordo com uma projeção da Aesbe, associação que congrega as companhias de saneamento dos estados brasileiros, neste ritmo, a meta de universalização dos serviços até 2020, cujo financiamento demandaria um investimento global de 178 bilhões de reais, segundo estimativa da própria SNSA (2003), teria de ser adiada para 2038.6 Portanto, a meta do governo de antecipar em cinco anos a proposta de universalização dos serviços de saneamento acordada na ONU, ou mesmo de cumpri-la no prazo normal (até 2025), parece muito difícil de ser alcançada sem uma contribuição substancial, ainda que minoritária, de investimentos privados, face às carências do setor e às dificuldades do financiamento público discutidas a seguir. Naturalmente, nada garante que o investimento privado seja composto primordialmente por aportes diretos dos acionistas das concessionárias, que muitas vezes preferem recorrer a empréstimos a juros reduzidos junto ao circuito financeiro dos bancos de desenvolvimento do mercado doméstico ou internacional. Porém, mesmo que em última análise o ônus econômico da expansão dos serviço recaiam sobre os usuários, uma vez que o custos do empréstimos e investimentos serão forçosamente repassados às tarifas, ainda assim o setor privado teria um papel a desempenhar no financiamento a longo prazo do setor.

Saneamento básico nas cidades brasileiras: panorâmica das condições atuais

    Não obstante o saneamento ambiental poder ser visto como atividade estratégica para a melhoria da saúde pública e o desenvolvimento sócio-econômico do país, contribuindo para diminuir a incidência de doenças e as despesas com assistência médico-hospitalar, como também para aumentar a renda e o emprego entre as populações de baixa renda, o investimento público neste setor sofreu um forte declínio a partir da década de 1990, particularmente durante os dois mandatos do presidente Cardoso.7 A política de ajuste fiscal daquele governo, assim como a opção por uma estratégia privatizante de modernização desse setor (Silva, 2002), levou à imposição de fortes restrições ao endividamento das companhias estaduais e entidades municipais de saneamento, que se viram impedidas de acessar os recursos do FGTS, a principal fonte de financiamento estável para esse setor no Brasil. Em conseqüência do declínio nos investimentos, o setor acumula um significativo déficit de atendimento e de qualidade nos serviços em questão.
    Embora quase 90 por cento da população urbana do país já tenham acesso à água encanada, de acordo com o Censo 2000, ainda restam cerca de 15 milhões de pessoas sem este serviço nas cidades brasileiras. Trata-se, sobretudo, de famílias de baixa renda que moram em áreas irregulares na periferia das grandes cidades ou em municípios pobres de pequeno porte no interior. Além da necessidade de estender esse serviço a tais populações, é preciso investir muito para melhorar a sua qualidade: conforme a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB), realizada pelo IBGE em 2000, cerca de 20 por cento dos distritos abastecidos com água potável apresentavam intermitência no abastecimento, o que gera riscos à saúde e deterioração das redes. Por outro lado, segundo dados do SNIS,8 o índice médio de perdas de faturamento nos sistemas de água (vazamentos e fraudes) atingia 40,5 por cento em 2002.
    Quanto ao esgotamento sanitário, a situação é muito pior: de acordo com o Censo 2000, cerca de 63 milhões de brasileiros (46 por cento da população urbana) não possuem o domicílio conectado às redes coletoras de esgotos de nossas cidades. Aliás, segundo a PNSB realizada no mesmo ano, metade dos municípios sequer dispõe dessas redes. Por outro lado, conforme a mesma fonte, apenas 35 por cento dos esgotos coletados no país recebem algum tipo de tratamento, enquanto o restante é despejado in natura nos corpos d’água que banham o país.9
    Diante das deficiências apresentadas acima, o governo federal buscou estimar as necessidades de investimento para garantir a universalização destes serviços à população urbana, incluindo o tratamento de esgotos. Revendo cálculos do governo anterior, a SNSA estima que o investimento requerido envolveria aportes anuais da ordem de R$ 6 bilhões ou cerca de 0,45 por cento do PIB até 2020. Trata-se de montante difícil de alcançar sem uma contribuição substancial de investimentos privados. Segundo o próprio Ministério, os investimentos federais dependeriam de uma taxa média de crescimento da economia de 4 por cento ao ano, enquanto outras fontes de financiamento público, como receita tarifária de operadores públicos, orçamento de Estados e municípios, e cobrança pelo uso da água parecem ainda mais incertas: a maior parte dos Estados e municípios enfrenta dificuldades fiscais e restrições na capacidade de endividamento; a cobrança pelo uso da água é muito incipiente no país e ainda depende de regulamentação legal em diversos Estados. Enfim, apenas seis, entre as 25 empresas estaduais de saneamento, que respondem conjuntamente por cerca de 70 por cento dos investimentos no setor, apresentaram receitas superiores às despesas em 2002 (MCidades/IPEA, 2004).10 Ademais, raramente o investimento público nesse setor ultrapassou a média anual de 0,3 por cento do PIB, sequer durante os anos 1970, no auge do Plano Nacional de Saneamento (Planasa), cujos reflexos ainda permanecem bastante marcantes na estrutura administrativa e no quadro institucional do setor (v. a seguir).
    Por razões históricas, a oferta de serviços urbanos de água e esgotos em nosso país tem sido dominada por operadores públicos, especialmente as Companhias Estaduais de Saneamento Básico. Criadas em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal, sob os auspícios do Planasa, tais companhias servem hoje a cerca de 80 por cento da população atendida neste setor. Outros 16 por cento são atendidos por operadoras municipais, e os 4 por cento restantes por companhias privadas, atuantes em 50 municípios, incluindo todas as todas as regiões, exceto o Nordeste, além de duas capitais de Estado (Manaus e Campo Grande).11
    Portanto, a participação privada na prestação dos serviços de saneamento básico é ainda bastante restrita no Brasil, não obstante a atratividade do mercado brasileiro para a chamada «indústria da água». O que explica a fraca participação de concessionárias privadas, sejam de capital nacional ou estrangeiro, nesse setor não é tanto a resistência política organizada das corporações envolvidas e seus aliados na sociedade civil, mas principalmente alguns obstáculos jurídico-legais presentes em seu ordenamento institucional, como se comenta sucintamente a seguir.
    A principal questão em jogo diz respeito à titularidade dos serviços (i.e.: a definição de quem é o poder concedente destes), cuja disciplina jurídica constitucional revela-se confusa, tendo impedido a privatização das companhias estaduais de saneamento.12 Embora a Constituição Federal de 1988 atribua aos municípios competência exclusiva sobre «serviços de interesse local», situação que caracteriza o saneamento na maior parte das cidades brasileiras, a Carta Magna também reconhece ao Estado competências concorrentes nesta matéria, sobretudo nas regiões metropolitanas em que poderiam ser enquadrados como serviços de interesse comum através de lei complementar estadual. Esta ambigüidade tem dado margem a acirradas disputas judiciais em torno da titularidade dos serviços em processos de «municipalização» ou privatização do setor. O anteprojeto de lei da Política Nacional de Saneamento do governo Lula (MCidades, 2004) procura disciplinar esta matéria através da noção de «gestão associada», buscando ao mesmo tempo preservar a autonomia municipal e a necessidade de integrar as ações de saneamento na escala regional. Mas está longe de por um fim na controvérsia que a cerca.
    Em todo caso, a questão da titularidade sobre os serviços de saneamento nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas continua sem regulamentação definitiva, o que dificulta a privatização das companhias estaduais. Porém, a privatização tende a avançar por outra via: a «municipalização». Trata-se da retomada dos serviços concedidos às empresas estaduais por parte dos municípios descontentes, seja para administrá-los diretamente, seja para renegociar a concessão com outros operadores, na medida que o prazo fixado para aquelas concessões (geralmente, 20 a 30 anos) já chegou ou se aproxima do fim em muitos deles. Afinal, conforme dados levantados pelo SNIS, em 2002 havia 488 municípios com serviços administrados por concessionárias estaduais com contratos de concessão vencidos, enquanto outros 320 jamais haviam formalizado a concessão mediante contrato com a respectiva companhia estadual (MCidades/IPEA, 2004).

Riscos e oportunidades do envolvimento privado na prestação dos serviços: questionando alguns aspectos da teoria e do debate

    As considerações anteriores sobre a organização administrativa e institucional do saneamento na atual conjuntura política e econômica indicam que o envolvimento privado na prestação dos serviços de água e esgotos tende a continuar crescendo no Brasil, por mais que o processo venha a ser desacelerado pela retirada de incentivos por parte do governo central e a indefinição do marco regulatório do setor. Neste contexto, quais seriam os riscos e as oportunidades contidos nessa tendência a um aumento gradativo e pulverizado da participação de operadores privados neste setor?
    Deixando de lado argumentos ideológicos típicos da retórica neoliberal veiculada em publicações do Banco Mundial –que associam maior participação do setor privado nos serviços de utilidade pública dos países em desenvolvimento à diminuição das desigualdades sociais, à redução do déficit público, e ao fortalecimento da democracia, entre outros aspectos (Castro, 2002)– podemos considerar a possibilidade de atrair capital privado para investir na melhoria e ampliação da infra-estrutura, numa época de recursos públicos escassos e comprometidos com o pagamento de dívidas, como a principal vantagem potencial da concessão dos serviços a companhias privadas nacionais ou estrangeiras. Para assegurar que este objetivo seja cumprido satisfatoriamente, no entanto, é preciso contar com um aparato regulatório consistente, envolvendo contratos de concessão equilibrados, nos quais os direitos e obrigações do poder concedente e da concessionária sejam plenamente assegurados, nos moldes do que prevê a Lei de Concessões,13 além de entidades reguladoras dotadas de qualificação técnica e de autonomia decisória e financeira para fiscalizar o seu cumprimento. Resta saber se estas condições estão sendo asseguradas nas concessões que vêm sendo realizadas pulverizadamente no país.
    Além dos novos investimentos esperados, outra vantagem de uma ampliação da participação privada na prestação dos serviços de saneamento bastante citada na literatura especializada diz respeito ao aumento da eficiência global do setor, que seria incentivada pelo aumento da competição (estatística e pelo mercado) entre operadores públicos e privados.14 Tal argumento aparece não apenas em bastiões do Consenso de Washington, como publicações do Banco Mundial e o semanário britânico The Economist, sob a forma de um discurso cifrado a respeito das virtudes do mercado e das «falhas de governo», mas também em estudos menos comprometidos com o fundamentalismo de mercado, que apresentam evidências empíricas da baixa eficiência da maior parte dos operadores públicos dos países em desenvolvimento. No caso brasileiro, este argumento aparece claramente em um dos estudos do Programa de Modernização do Setor Saneamento (PMSS), no qual uma participação de empresas privadas transnacionais no mercado brasileiro, ainda que minoritária, é vista como vantajosa por incentivar a busca de maior eficiência e competitividade por parte das companhias estaduais de saneamento, além de possibilitar transferência de tecnologia avançada para o setor.15 Não se trata do argumento neoliberal simplista que supõe ser o setor privado intrinsecamente eficiente ou o setor público necessariamente ineficiente, mas sim da suposição de que uma concorrência entre ambos os setores contribuiria para aumentar a eficiência global do sistema, pois algumas empresas estatais que atuam neste campo, como a Sabesp, estão entre as mais eficientes do país.
    A literatura especializada também indica diversos riscos potenciais do crescente envolvimento privado na prestação de serviços de água e esgotamento sanitário.16 Silva e Britto (2002), por exemplo, tecem as seguintes considerações a este respeito:
· a regulação do saneamento deixaria de ser baseada na lógica dos direitos sociais, mas antes subordinada à lógica econômica do mercado. Os principais prejudicados seriam as populações mais pobres que vivem em assentamentos urbanos irregulares nas periferias das cidades, cuja exclusão seria mantida, na medida em que o atendimento a essas áreas demanda intervenções integradas de alta complexidade nos planos urbanístico e social, que fogem à capacidade gerencial e aos interesses do setor privado;
· a necessidade de regulação desse setor seria imperativa não apenas por seu caráter essencial à saúde pública e à qualidade do meio ambiente, mas também por ser prestado em regime de monopólio. A regulação seria imprescindível para garantir a permanente expansão, melhoria e universalização dos serviços, bem como para evitar preços abusivos e a exclusão das camadas de baixa renda;
· a ênfase na prestação privada dos serviços através de novas concessões poderia resultar no aviltamento da noção de saneamento ambiental, agravando a falta de integração entre as infra-estruturas e os serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem urbana e resíduos sólidos, especialmente nas áreas pobres e desprovidas destes equipamentos e serviços.
    Além das considerações acima, um aumento significativo na participação de operadores privados neste setor levaria a uma fragmentação da oferta de serviços outrora integrados em sistemas mais abrangentes, que garantiam a viabilidade econômica dos sistemas menores e o acesso da população de baixa renda através de subsídios cruzados e tarifação progressiva ou social. Haveria, portanto, um risco de dumping social, claramente manifestado nos casos de Buenos Aires e Cochabamba, entre outros, que se associa ao interesse exclusivo do capital privado pelas regiões e segmentos mais rentáveis (cherry picking), deixando para os governos o ônus de arcarem sozinhos com o atendimento das áreas e populações mais pobres.17
    Outro risco muito citado na literatura é a possibilidade de captura do regulador pelo regulado, devido à assimetria de poder e informação que resulta da concessão de serviços municipais a grandes corporações transnacionais, as quais agem orientadas por comportamento estratégico destinado a privilegiar os interesses dos acionistas em detrimento dos interesses dos usuários e do poder público. Esse risco favoreceria a manipulação de informações contábeis e renegociações contratuais visando obter lucros e aumentos tarifários extraordinários, ou ainda a renovação automática das concessões, através de esquemas fraudulentos e/ou corrupção ativa de funcionários e autoridades públicas, como ocorreu em Grenoble, na França (Hall, 2001), ou ainda, de maneira mais sutil, na concessão dos serviços da Grande Buenos Aires.18
    Contudo, não se pode prever um comportamento padrão a priori dos operadores privados em nenhum dos aspectos citados, até porque sua atuação depende de outros fatores, como a qualidade da legislação que enquadra a concessão, do contrato, da autonomia e independência das entidades reguladoras e, sobretudo, do capital social presente no município ou região na forma de entidades da sociedade civil mobilizadas para exigir transparência na administração dos assuntos de interesse público (Farina, Azevedo & Picchetti, 1997). Em princípio, nada impede que operadores privados possam atuar de forma articulada com as prefeituras e entidades comunitárias em intervenções urbanas integradas, visando atender populações desfavorecidas em assentamentos irregulares de moradia precária;19 por outro lado, a necessidade de regulação e as assimetrias de informação e poder entre reguladores e regulados não são menos importantes em relação aos operadores públicos,20 da mesma forma que as dificuldades de integração entre as infra-estruturas e serviços de saneamento ambiental. Enfim, a gestão pública não é menos sujeita a corrupção, e nem toda concessão ao setor privado implica aumentos extraordinários de tarifas ou o fim de subsídios cruzados. Há evidências contraditórias de todos estes aspectos, podendo ser citados casos de fracasso e sucesso tanto da gestão pública quanto da gestão privada em cada um deles.21 Daí a necessidade de estudos de caso para verificar as condições que favorecem a prestação adequada de serviços públicos por operadores privados no campo do saneamento, minimizando os riscos e maximizando as oportunidades, sem deixar de considerar, para além da dimensão técnica e econômica, os aspectos sociais, ambientais e político-institucionais envolvidos.

A experiência dos estudos de caso: análise dos principais resultados

     Os estudos de caso do projeto Prinwass no Brasil foram realizados entre meados de 2001 e meados de 2003. A pesquisa de campo envolveu a coleta de informações sobre diversos aspectos dos serviços de saneamento e a política de desenvolvimento urbano dos municípios implicados nas três concessões, incluindo diversas fontes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, SNIS, imprensa e buscas na internet), além de entrevistas com dirigentes das concessionárias, de órgãos municipais do executivo e do legislativo, de entidades reguladoras e representantes de organizações não governamentais. Também foram analisados os respectivos editais de licitação, as leis de autorização e os contratos de concessão, além de outros documentos oficiais referentes a cada caso. Buscou-se analisar as conseqüências de cada concessão sobre a qualidade, o alcance social, os custos e o impacto ambiental dos serviços, bem como a eficácia dos mecanismos de regulação criados para garantir a prestação de serviços adequados e o cumprimento dos contratos.
    Com relação à dimensão econômico-financeira, podemos dizer que, nos três casos analisados, a «privatização» revelou-se uma alternativa para alavancar investimentos na expansão e/ou melhoria dos serviços. Mas há diferenças importantes entre as experiências examinadas, conforme se observa a seguir após uma breve descrição de cada concessão.
    Em Limeira, cidade de porte médio com cerca de 250 mil habitantes onde ocorreu a primeira iniciativa deste tipo registrada na história recente desse setor no país, os serviços urbanos de água e esgotos do município foram concedidos por um período de 30 anos à companhia Águas de Limeira, oriunda do consórcio formado pela construtora nacional Odebrecht (50 por cento) e a companhia Suez Lyonnaise des Eaux (50 por cento), vencedor da licitação. A empresa foi selecionada pelo critério da menor tarifa, não tendo havido cobrança de direitos de exploração dos serviços. O contrato de concessão, firmado pela companhia e a prefeitura municipal em junho de 1995, teve seu valor global (como projeção de receitas ao longo do período de concessão) estimado em 495,5 milhões de reais no edital, cabendo à concessionária investir neste período 98,4 milhões em melhorias diversas (ampliação da produção e da reservação de água, controle de perdas, tratamento de esgotos, etc).
    Cumpre observar que, no período anterior à concessão, os índices de atendimento, tanto para água como para esgotos, já eram mais elevados do que as metas previstas no contrato atual, mas a autarquia municipal que se encarregava destes serviços não dispunha de recursos para investir no tratamento das águas servidas, que era praticamente inexistente. Embora boa parte da construção da Estação de Tratamento de Esgotos do rio Tatu tenha sido financiada pela indústria local, antes da privatização, caberia à concessionária privada aportar investimentos estimados em cerca de R$ 50 milhões para terminá-la e realizar as obras complementares, visando tratar a totalidade dos esgotos do município até 2009. Contudo, mesmo que tal meta venha a ser atingida com a aplicação destes recursos, considerando-se os índices de atendimento e os investimentos já realizados neste sistema antes da privatização, parece razoável supor que a antiga autarquia poderia ter sido financeiramente saneada para viabilizar os investimentos nesse campo através de outros arranjos institucionais que levassem a uma gestão mais eficiente, com maior autonomia decisória e controle social, sendo transformada, por exemplo, numa companhia municipal.
    Já nos casos estudados no Estado do Rio de Janeiro, o gargalo nos investimentos era muito maior e mais evidente em todos os municípios envolvidos, cujos serviços de saneamento estiveram anteriormente a cargo da concessionária estadual (Cedae). Apresentando, problemas de ineficiência operacional e comercial, endividamento e ingerência política na administração, os investimentos realizados pela Cedae, tanto em Niterói como no conjunto da Região dos Lagos, revelaram-se cronicamente insuficientes.
    Em Niterói, que conta com uma população superior a 500 mil habitantes e detém a segunda maior renda per capita do Estado, bairros inteiros situados na área de expansão da cidade, tanto os populares quanto os de classe média, foram mantidos anos a fio sem água encanada e rede de esgotos. Por outro lado, os esgotos coletados no núcleo central da cidade eram lançados praticamente sem tratamento na Baía da Guanabara. Diante desta situação, a prefeitura decidiu não mais prorrogar a concessão dos serviços à Cedae, como vinha fazendo desde 1992, quando venceu o contrato com a concessionária estadual, desencadeando naquele momento o processo de privatização do setor no município. Tal processo culminou na concessão por 30 anos dos serviços de água e esgotos da cidade à companhia Águas de Niterói, formada por um consórcio de empresas nacionais de engenharia e construção, que venceu a licitação com base na menor tarifa, assinando contrato com a prefeitura em outubro de 1997.22 Com seu valor global estimado em 1,65 bilhão de reais, o contrato estabeleceu metas de investimento de aproximadamente R$ 200 milhões na melhoria e ampliação dos serviços.
    Na Região dos Lagos, que abrange oito municípios e cerca de 450 mil habitantes, por sua vez, a Cedae nada investira em esgotamento sanitário, que era praticamente inexistente na região. Por outro lado, o abastecimento de água, proveniente de um único reservatório, também apresentava notáveis deficiências, pois a rede distribuidora não atingia as áreas urbanas mais altas e afastadas, enquanto a área central das cidades sofria interrupções no abastecimento, especialmente durante o verão, quando a população quase triplica com o afluxo de turistas e visitantes. Face a esta situação, o governo do Estado negociou com os municípios a concessão compartilhada dos serviços à iniciativa privada, tendo sido encarregado de organizar o processo e o edital de licitação. A região foi dividida em duas áreas de concessão, nas quais os municípios foram reconhecidos como titulares dos serviços de distribuição de água potável, coleta e tratamento de esgotos, enquanto o Estado figurou como poder concedente titular da produção e da adução de água tratada. A concessão estudada por mim envolve cinco municípios da sub-região de Cabo Frio, cuja população residente totaliza cerca de 250 mil pessoas. Os serviços de água e esgotos destes municípios foram concedidos por 25 anos à Prolagos, empresa do grupo Águas de Portugal, que venceu a licitação oferecendo R$ 34,3 milhões pelo direito de exploração dos serviços (concessão onerosa) e firmou contrato com o Estado e os municípios em abril de 1998. Tal contrato, cujo valor global foi estimado em R$ 667 milhões, prevê investimentos da ordem de R$ 160 milhões ao longo da concessão.
    Tanto em Niterói como na área da Prolagos, as operadoras privadas investiram bastante na expansão e melhoria dos serviços, majoritariamente com recursos próprios (aportes dos acionistas), já tendo apresentado resultados visíveis, especialmente no abastecimento de água. Apesar das dificuldades iniciais, a sustentabilidade econômica de ambas as concessões parece hoje plenamente assegurada.
    No tocante à sustentabilidade social, as três concessões analisadas revelaram problemas neste aspecto. Ao contrário do ocorrido em outras privatizações de serviços de água e esgotamento sanitário, seja fora (Buenos Aires) ou dentro do Brasil (Manaus, Campo Grande), nenhuma das concessões examinadas resultou, até o momento, em aumentos reais de tarifas significativamente acima da inflação.23 Diferentemente do ocorrido com as tarifas de eletricidade e telefone depois da privatização, as tarifas de água e esgotos das operadoras privadas continuam representando uma parcela relativamente pequena do orçamento familiar nestas concessões, variando de aproximadamente 5 por cento do salário mínimo vigente em dezembro de 2002 em Limeira, a cerca de 7 por cento na área de concessão da Prolagos ou 9 por cento em Niterói, no mesmo período. Apesar do aumento da tarifa média registrado nas concessões privadas do Estado do Rio de Janeiro, que ficaram acima da tarifa média da Cedae, as tarifas correspondentes ao consumo mínimo das operadoras privadas permaneceram abaixo da praticada pela concessionária estadual na faixa correspondente. Contudo, como os déficits de cobertura se concentram na população de baixa renda, que vive em moradias precárias em assentamentos urbanos irregulares, a busca de universalização do atendimento envolve necessariamente esquemas de tarifação social, entre outras medidas. Este problema foi devidamente reconhecido pelas concessionárias dos serviços de Limeira e de Niterói, onde estão sendo aplicados descontos nas tarifas e/ou nas taxas de ligação para populações de baixa renda, além de medidas complementares (contratação de mão de obra local e apoio a iniciativas comunitárias), cujo alcance é ainda bastante limitado. Mas não há nada semelhante na área de concessão da Prolagos, onde os assentamentos populares irregulares estão se expandido rapidamente.
    No que tange à sustentabilidade ambiental, em que pese a falta de informações mais detalhadas sobre esta dimensão antes e depois da privatização, é evidente que a necessidade de investimentos pesados em tratamento de esgotos representou um dos principais motivos alegados para as três concessões analisadas. No caso de Limeira, em que a necessidade de investimentos se concentrava neste campo, os poderes públicos municipais foram pressionados a tratar os esgotos da cidade pelos municípios a jusante no âmbito do combativo Comitê das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. Nas cidades costeiras de Niterói e, principalmente, da Região dos Lagos, cuja economia depende substancialmente do turismo, a necessidade de investir na despoluição de lagoas e praias dizia respeito não apenas à recuperação de sua qualidade ambiental, mas também à maximização das oportunidades de desenvolvimento local e regional. De qualquer modo, os contratos de concessão revelaram-se deficientes na fixação de metas neste aspecto, uma vez que os parâmetros de qualidade dos efluentes tratados, entre outros aspectos, foram fixados com base numa perspectiva estritamente setorial e local, sem qualquer articulação elaborada com os sistemas de recursos hídricos e meio ambiente na escala regional.
    Quanto à regulação e ao controle social sobre a prestação dos serviços, trata-se do aspecto mais problemático do conjunto das concessões analisadas. Apesar de diferenças significativas nos arranjos institucionais correspondentes,24 nos três casos analisados há problemas de falta de transparência em aspectos significativos de cada concessão (taxa de retorno, fórmula que traduz o equilíbrio econômico financeiro dos contratos, etc.) e ausência de qualquer instância formalizada de caráter consultivo ou fiscalizatório que envolva a participação de usuários ou entidades autônomas da sociedade civil.

Conclusões e desafios

    Que lições mais gerais podemos extrair dos casos estudados para além de seu contexto local/regional? Que contribuição trazem para o debate sobre a política nacional de saneamento do país? O que ensinam sobre os riscos e oportunidades da participação privada neste setor nos países em desenvolvimento, ou as condições que permitem minimizar os primeiros e maximizar as últimas?
    Com relação à política nacional de saneamento do Brasil, nossos estudos de caso contribuem para o debate ao demonstrar que a participação privada neste setor, sob determinadas condições, pode contribuir para ampliar a cobertura e melhorar a qualidade dos serviços. Delegar a gestão dos serviços ao setor privado, no âmbito de um contrato de concessão equilibrado e corretamente regulado, com transparência e controle social, pode ser uma alternativa para superar gargalos financeiros e/ou político-institucionais da gestão pública. Obviamente estas condições não estão dadas, devendo haver vigilância e participação da sociedade em todas as etapas do debate e das decisões a este respeito. Em todo caso, a capacidade de investimento dos operadores públicos é amiúde comprometida por uma gestão ineficiente dos serviços, vulnerável a interferências políticas de caráter populista (contenção de tarifas, empreguismo, tolerância para com a inadimplência) ou a desvios de recursos para outras finalidades públicas ou privadas (corrupção). Tais aspectos estiveram presentes, em maior ou menor grau, nos três casos analisados, e a concessão dos serviços à iniciativa privada foi um meio de tentar resolver a crise do modelo anterior, cujos resultados foram ambivalentes.
    Assim, não se trata de propor que a gestão privada seja sempre mais eficiente, mais transparente e melhor regulada que a gestão pública, pois a primeira apresenta dificuldades específicas no que tange ao alcance social e à regulação dos serviços, estando igualmente sujeita à corrupção (vide indícios na concessão de Limeira). De fato, há exemplos de desvios, tanto quanto de eficiência ou ineficiência em ambos os campos, de modo que a retomada da gestão pública também pode ser, como o foi no passado, uma estratégia para superar gargalos no financiamento e expansão dos serviços enfrentados por operadores privados. O que os estudos de caso sugerem é a necessidade de um quadro institucional ao mesmo tempo abrangente e flexível para os serviços de saneamento no país, que não feche as portas à iniciativa privada, nem tampouco a coloque como eixo principal da política nacional de saneamento. Propõe-se superar o debate político-ideológico de mera resistência à «privatização», que ainda marca a atuação das principais entidades representativas do setor, para discutir as condições que permitem minimizar os riscos e maximizar as oportunidades da participação privada na operação dos serviços, sem jamais perder de vista o seu caráter intrinsecamente público, i.e.: o saneamento como direito social de todo cidadão cuja provisão permanece sendo, em qualquer situação e independentemente da natureza do operador, uma responsabilidade inalienável do Estado.
    Entretanto, há que reconhecer, como foi feito nos primeiros estudos do PMSS (1995), que a participação da gestão privada na política nacional de saneamento, embora crescente, deverá permanecer minoritária, diante das fortes desigualdades sociais e regionais do país. Neste sentido, cabe ponderar que os estudos de caso analisados, nos quais a iniciativa privada vem apresentando desempenho globalmente positivo, não obstante os aspectos problemáticos examinados, concentram-se na região mais rica do país. Certamente a política nacional de saneamento deve pautar-se por outras prioridades, como democratizar e aumentar o controle social sobre a gestão das empresas estaduais de saneamento e criar novos mecanismos e fontes de financiamento para os operadores públicos, inclusive formas de tornar mais eficazes e focalizados os subsídios diretos ou cruzados aplicados no setor.
    Pode-se dizer que o anteprojeto de lei da Política Nacional de Saneamento formulado pelo governo Lula, que vem sendo discutido em diversas audiências públicas, enfrenta problemas centrais para viabilizar a universalização dos serviços: a questão da titularidade nas regiões metropolitanas, através da noção de «gestão associada»; o resgate do município como poder concedente mediante «contratos de programa» com as concessionárias estaduais; o acesso das camadas de baixa renda, via criação de fundos de universalização e garantia de abastecimento ao usuário inadimplente; o aumento do controle social sobre os serviços, através do reforço aos direitos do usuário, da exigência de que toda concessão seja precedida de audiências públicas e da obrigatoriedade de avaliação anual externa. Contudo, o anteprojeto padece de excessiva centralização de poder na esfera federal e de um viés contrário à iniciativa privada que destoa de seu espírito geral.
    Com relação ao primeiro aspecto, o anteprojeto estabelece a adesão à Política Nacional de Saneamento por parte dos prestadores de serviços como condição de acesso aos financiamentos federais, desconsiderando o conseqüente aumento nos custos de transação envolvidos, que podem dificultar o acesso dos municípios menores com carência de recursos humanos qualificados e retardar os investimentos necessários.
    Quanto ao viés contrário à iniciativa privada, o anteprojeto permite que os municípios deleguem a prestação dos serviços a companhias estaduais sem licitação, o que é incoerente com a Lei de Concessões e com a noção, presente no texto, de que os serviços devem ser prestados segundo princípios gerais de universalidade, equidade, sustentabilidade, etc., independente do caráter público ou privado do operador.
    Extrapolando o seu contexto, os estudos de caso desenvolvidos no Brasil demonstram que os riscos e oportunidades da gestão privada dos serviços de saneamento nos países em desenvolvimento não dependem somente das condições locais, mas, sobretudo, do ambiente sócio-institucional mais amplo de cada nação. Neste sentido, a ausência de boas condições de governança regulatória e de capital social acumulado pode ser uma condição suficiente para rejeitar as concessões à iniciativa privada como opção estratégica para este setor, ao passo que, inversamente, a presença de tais condições pode ser vista como condição necessária, mas não suficiente, para uma gestão privada não apenas eficiente, mas também sustentável nas dimensões econômica, social e ambiental (Vargas & Seppäla, 2004).

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NOTAS:

1 No caso dos municípios pertencentes à micro-região dos Lagos, trata-se de um único contrato de concessão em que estes compartilham o poder concedente, ou a «titularidade» sobre os serviços delegados ao setor privado, com o Estado do Rio de Janeiro, conforme descrito adiante, na seção 4. No ordenamento jurídico brasileiro, a prestação de serviços públicos, seja direta ou indiretamente, mediante gestão delegada a operadores privados ou empresas para-estatais, é uma responsabilidade inalienável do poder público. Portanto, a infraestrutura e os ativos correspondentes revertem ao patrimônio público tão logo se encerra uma concessão. O termo «privatização» refere-se aqui a este tipo de arranjo. Acrescente-se que o Brasil é uma república federativa, na qual as províncias são denominadas Estados e dotadas de plena autonomia política.
2 Em sua acepção mais ampla, o termo saneamento corresponde, no Brasil, à ação de sanear o meio em que vivemos. Portanto, abrange não apenas o abastecimento de água e o esgotamento sanitário dos assentamentos humanos (o chamado «saneamento básico»), mas também o conjunto de atividades voltadas para a promoção da salubridade do meio («saneamento ambiental»), em que também se incluem o manejo das águas pluviais, a coleta e disposição adequada dos resíduos sólidos, o controle de vetores de doenças contagiosas, além da disciplina sanitária do uso e ocupação do solo. Porém, salvo menção em contrário, privilegio neste texto o uso do termo saneamento na sua acepção menos abrangente, mas de uso corrente entre os profissionais brasileiros deste setor, que o restringe às atividades de saneamento básico focalizadas no meio urbano.
3 Tais linhas de crédito são alimentadas por recursos pertencentes ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), geridos respectivamente pelo Bndes e a CEF, que são as principais fontes de financiamento de longo prazo e juros baixos disponíveis para este setor no país.
4 Após quase dois anos de tramitação no Congresso, o projeto de lei das PPPs foi aprovado em 22 de dezembro de 2004, devendo entrar em vigor no início de 2005, após sanção presidencial. Trata-se de um arranjo em que o setor privado atua como investidor e/ou operador em obras e serviços públicos de retorno financeiro incerto no curto e médio prazo, especialmente na área infra-estrutura, tendo a remuneração de seu investimento garantida pelo governo durante a vigência do contrato de parceria, cuja duração não pode ser inferior a cinco ou superior a 35 anos.
5 As diretrizes desta política, consubstanciadas pelo executivo em anteprojeto de lei federal que vem sendo amplamente debatido com a sociedade civil desde meados de 2003, são abordadas em linhas gerais na última parte deste trabalho.
6 Dados extraídos da reportagem «Na contra-mão, Lula reduz gastos com saneamento», publicada no jornal Folha de São Paulo em 16 de janeiro de 2005. De qualquer modo, a liberação de créditos do FGTS para os operadores públicos, praticamente bloqueados no governo anterior, representa um avanço a ser concretizado.
7 Dados da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental indicam forte declínio nos gastos federais neste setor entre 1995 e 2002 (SNSA, 2003).
8 Sistema Nacional de Informações em Saneamento (MCidades/IPEA, 2004).
9 Em princípio, trata-se de um índice de tratamento bastante razoável, se comparado com o desempenho de outros países em desenvolvimento, ou mesmo desenvolvidos, neste campo. Mas o IBGE nada diz sobre a qualidade deste tratamento, que consiste principalmente em tratamento primário, que remove no máximo 30 por cento da carga poluidora orgânica dos efluentes.
10 Neste conjunto se considera a Companhia de Saneamento do Distrito Federal (Caesb), mas não a empresa de saneamento do Estado do Amazonas (Cosama), que se encontra em processo de dissolução.
11 Dados aproximados, cotejando o último diagnóstico do SNIS (SNSA, 2003) e um levantamento da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgotos (ABCON) sobre as concessões privadas de saneamento no país, atualizado em setembro de 2003. Foram contabilizadas apenas as concessões plenas apresentadas neste último, i.e.: que envolvem água e esgotos, deixando de lado uma dezena de contratos limitados a um único serviço (concessões parciais) ou operação (e.g: a construção e operação de uma estação de tratamento de água ou esgoto, dentro do esquema BOT–Build, Operate and Transfer, ou ainda, a terceirização da perfuração de poços).
12 De fato, as tentativas dos governos provinciais (apoiados ou induzidos pelo governo federal) de privatizar as respectivas concessionárias de saneamento no Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Amazonas, durante a administração do presidente Cardoso, foram impedidas pela impossibilidade de se transferir as concessões dos serviços municipais que detinham nestes Estados aos investidores privados sem prévia autorização e compensações aos municípios envolvidos.
13 Lei Federal nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995.
14 Dada a existência de monopólio natural nesse setor, não haveria propriamente competição no mercado de prestação destes serviços, mas sim disputa para conquistar novos mercados cativos por ocasião de novas concessões ou renovação de contratos antigos. Neste contexto, conforme observa Seppälä (2003), a chamada competição estatística (yardstick competition) pode desempenhar um papel relevante como mecanismo auxiliar de regulação do setor.
15 Pereira, D.S; L.A. Baltar; M.T. Abicalil (1997); Saneamento: modernização e parceria com o setor Privado, série Modernização do Setor Saneamento, vol. 9, Brasília, MPO-Sepurb/IPEA
16 Castro (2002) e Seppälä (2003), baseando-se em ampla revisão bibliográfica centrada na crítica aos argumentos econômicos e políticos das agências multilaterais de cooperação em favor do aumento da participação privada neste setor, também fornecem uma visão abrangente dos riscos envolvidos nas políticas pró-mercado.
17 Ver considerações de Graham & Marvin (1994) sobre os efeitos sociais perversos da privatização e da desregulamentação dos serviços industriais de utilidade pública no Reino Unido. Uma análise mais abrangente desta questão no contexto europeu pode ser encontrada em Coutard (2000).
18 No caso da Grande Buenos Aires, a maior concessão privada de saneamento já realizada em um país em desenvolvimento, houve captura da autoridade política, uma vez que o contrato foi submetido a diversas revisões realizadas por Decreto do Poder Executivo Nacional em regime de «Necessidad y Urgência» (que exclui apreciação do Congresso), as quais favoreceram sistematicamente a concessionária, em detrimento dos usuários, que passaram a financiar a expansão dos serviços com novas taxas.
19 Gutierrez et al. (2003), por exemplo, nas conclusões de uma pesquisa comparativa insuspeita sobre a participação do setor privado no fornecimento de água aos pobres em diversos países em desenvolvimento, argumentam que «algumas companhias transnacionais prestadoras de serviços públicos têm se revelado mais flexíveis que governos municipais na prestação de serviços para comunidades faveladas e assentamentos informais que não dispõem de propriedade da terra» (p. 32, traduzido por mim).
20 Vide considerações de Melo (2001:56) sobre «falhas regulatórias».
21 Os casos das concessões dos serviços de saneamento de Cochabamba (Bolívia), de Buenos Aires e da Província de Tucumán, na Argentina, que foram objeto de estudos de caso do projeto Prinwass podem ser citados como exemplo de fracasso, pelo impacto negativo que tiveram na qualidade e no acesso aos serviços por parte da população mais pobre (v. bibliografia). Nos casos brasileiros, como se vê a seguir, o balanço tende a ser mais favorável às concessões privadas, sobretudo nos casos do Estado do Rio de Janeiro.
22 Porém, a empresa só pôde assumir a operação dos serviços dois anos depois, devido a uma disputa judicial entre a prefeitura e o governo estadual em torno da titularidade dos serviços na região metropolitana do Rio de Janeiro.
23 Isso não quer dizer que não tenha havido aumentos significativos nas taxas de conexão à rede, como ocorreu em Limeira.
24 Em Limeira e Niterói, organismos municipais previamente existentes, criados para outros fins, sem pessoal qualificado, foram encarregados de exercer funções reguladoras sobre o setor de água e saneamento. Já no caso da PROLAGOS, em que a concessão foi compartilhada entre os municípios e o Estado do Rio de Janeiro, a regulação é exercida por uma agência estatal multi-setorial, dotada de autonomia financeira e administrativa e criada especificamente para este fim, cujo quadro de pessoal vem sendo ampliado e qualificado através de atividades de treinamento adequadas.